sábado, 30 de junho de 2018

A arte rural dos espantalhos

Atualmente fala-se muito de arte urbana. Umas pinturas feitas com latas de spray numa fachada de um edifício, a retratar políticos a esmagar com a bota a cabeça de um imigrante; um grupo de amigos de um bairro que têm jeito para improvisar rimas e formam uma banda de hip hop, com letras de revolta contra o sistema instalado; um comboio grafitado clandestinamente e pela calada da noite numa estação sombria com palavras de ordem; uma escultura construída com quinquilharias apanhadas num caixote do lixo. Tudo isto é visto como manifestações de arte urbana, embora de forma preconceituosa por alguns, porque está associada a marginais, a guetos, a gente desintegrada. Mas esta arte urbana tem impacto, porque é nas cidades que as pessoas vivem e que as coisas acontecem. E ninguém fica indiferente (pela positiva ou pela negativa) a uma fachada pintada de fresco ou a andar num comboio com as janelas grafitadas, porque não se vê a ponta de um corno para fora.

Nos meios rurais, a arte manifesta-se de forma diferente e tem subjacente a utilidade. Como é o caso do artesanato. As peças de artesanato remontam a tradições e a práticas ancestrais. Veja-se por exemplo, em Palme, a produção de gamelas em madeira, que serviam (e ainda servem) para amassar o pão e guardar alimentos, o fabrico de cestos para carregar diversos materiais; ou em Aldreu o fabrico de remos, que depois eram enviados para a beira-mar. Mas para além do artesanato tradicional, que corre risco de se extinguir à medida que os artesãos desaparecem (veja-se os casos recentes em Palme do desaparecimento dos senhores Larú e Arlindo da Sula, este último não deixando seguidores no ofício da cestaria), há por aí outros artistas anónimos que podem fazer carreira na dita arte rural. Por esta altura do ano, quando as cerejeiras ficam a vergar com cachos sumarentos de cerejas pretas e os lavradores lançam o milho à terra, surgem por aí uns senhores com esqueleto de madeira e corpanzil de colmo, vestidos à trouxe-mouxe, que são autênticas obras de arte. Tal como as pessoas de carne e osso, há-os de vários feitios, uns mais aprumados e asseados, outros parecem pedintes em terra de forretas, outros são aterradores, com as entranhas a irromperem pela roupa descosida. Os espantalhos são umas das manifestações mais curiosas da arte rural. E também têm a sua utilidade. Em primeiro lugar, porque mostram a preocupação e o zelo das pessoas em protegerem as suas culturas da passarada que anda lazarada com a fome. Em segundo, porque a maior ou menor dedicação com que os bonecos são feitos refletem a fibra do artista. Alguns pregam dois paus cruzados, dependuram-lhe uns trapos e assim fica o espantalho ao deus-dará. Os artistas que fazem estas obras são amadores e não se lhes augura um futuro por aí além na profissão. Outros dedicam horas e horas ao espantalho, capricham nos pormenores, agasalham-no convenientemente, estudam o local onde o vão colocar e visitam-no várias vezes, para o compor das inclemências do tempo ou da inveja dos que passam. Estes sim, são artistas de mão cheia e deviam figurar nos rankings municipais dos artistas rurais.

Num destes dias, deparei-me com uma destas obras de arte em Palme. O senhor cara de pau estava espetado num campo de milho que, pelas clareiras carecas de plantas, se adivinha ter sido desbastado por bando de gaios ou por comandita de pardais. O cavalheiro é alto e entroncado para se ver à distância e meter medo aos assaltantes de bico. Está empalado em madeira de carvalho, que é mais resistente ao bicho, e está virado para norte, talvez para não se queimar muito com o sol. O artesão vestiu-o com uns jeans Pierre Cardin, estilo chinos, que são mais desportivos. E como está muito na moda em Milão, os jeans estão vestidos ao contrário, o que mostra que o artesão percebe da poda. Veste ainda uma t-shirt Versace rosa sobre uma sweat XL da Armani, de cor cinza, o que lhe confere um estilo jovem, descontraído e casual. Na cabeça enverga um boné Lacoste e uma echarpe vermelha sem marca (presume-se que comprada nos ciganos da feira de Barcelos), que destoa claramente do resto. Num dos braços segura uma mala encarnada Louis Vuitton e este adereço está a gerar grande discórdia, porque dá um ar efeminado ao espantalho, que claramente se veste à homem. Já agora permitam-me que não se percebe a falta de “espantalhas”, de mini-saia justa e bem acima do joelho, de leggings coladas à pernaça de pau e de top dois palmos acima do umbigo. Talvez estas criaturas não causassem receio à bicharada, bem pelo contrário, eram capazes de atrair a passarada masculina e desassossegar os espantalhos machos, mas fica a dica para os artistas. Regressando ao nosso amigo, ela usa rastas amareladas e compridas até aos ombros que devem ter dado uma grande trabalheira ao artista, embora haja quem diga que o cabelo foi arranjado num dos salões de estética da freguesia. Desde que esta figura tão bizarra e vistosa foi espetada na leira, a passarada bateu as asas para outros terrenos, ou passa a grande altitude para não ter que encarar a criatura.

A eficácia dos espantalhos para afugentar a passarada é discutível e merece estudos mais aprofundados. No início, há o efeito surpresa, o inesperado, mas os animais são finórios. Apercebem-se rapidamente que aquilo não se mexe, que não representa perigo e que os braços abertos até são um bom poleiro para estarem a catar o piolho. Esta história fez-me lembrar o Romance da Raposa do Aquilino Ribeiro, que é um livro que devia ser de leitura obrigatória. É uma fábula sobre uma raposa que usa toda a sua manha e astúcia para sobreviver, o que obviamente também se aplica a muita gente. A passagem do livro é a seguinte:

“Às vezes, no meio do campo, um homem de palha, vestido de farrapos, pelo chapéu deixando passar o céu estrelado, estendia os braços a querer persuadir a gente que era sentinela de truz. Plantara-o ali o cultivador contra a raposa, os gaios e os pardais. E a comadre (a raposa), que era cortês e bem-educada, não entrava nem saía do campo que não saudasse o espantalho.
- Viva o meu catita! Sempre a vigiar, hem?”

Obra de artista rural em Palme



Ilustração retirada do "Romance da Raposa", 
mostrando a raposa, cheia de troça, a saudar o pobre espantalho



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