quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Raspadinhas

Foi notícia na semana passada um estudo elaborado por especialistas do Hospital de Braga e da Escola de Ciências de Saúde da Universidade do Minho que dá conta que um número crescente de pessoas tem pedido ajuda médica/psiquiátrica devido ao jogo da “raspadinha”. O estudo intitulado “Scratching the surface of a neglected threat: huge growth of Instant Lottery in Portugal” revela que as receitas deste jogo em 2018 ascenderam a 1594 milhões de Euros, o que representa um crescimento superior a 10 vezes face às receitas obtidas em 2010, quando este jogo foi lançado pela Santa Casa. O estudo refere que as principais razões do sucesso da raspadinha são a facilidade de acesso (podem ser compradas em muitos locais), o seu baixo custo, a simplicidade do jogo, o resultado imediato e a possibilidade de obtenção de vários prémios. Os investigadores referem ainda que, em média, um português gasta anualmente 160€ em raspadinhas, enquanto um espanhol joga em média 14€. A febre da raspadinha afeta vastas camadas da sociedade portuguesa, incluindo a população mais idosa que estoura parte dos seus parcos rendimentos neste jogo. Há inclusive relatos de pessoas que se têm endividado e penhorado bens para poderem comprar raspadinhas. Por isso, o estudo conclui sobre a necessidade de se regulamentar e limitar o acesso às raspadinhas, que é classificado pelos autores um jogo epidémico. Tal regulamentação seguiria as pegadas de outras iniciativas meritórias no domínio da saúde mental, como as relacionadas com a toxicodependência, de que Portugal é considerado um país exemplar.

O vicío da raspadinha tornou-se, pois, num hábito social consentido e aceite. E Palme não é exceção. Dantes ia-se ao tasco e pedia-se um café com cheirinho ou um fino e um prato de tremoços. Agora a moda é “tira-me um café e arranja-me uma raspadinha”. Se não tiver, nem que seja um mísero Euro que dê para a gasolina, pede-se outra. E mais outra, e outra, e assim sucessivamente. As raspadinhas estão frequentemente esgotadas em Palme e nas freguesias vizinhas, há pessoas que compram às molhadas delas, de vários tipos, feitios e preços. Raspar aqueles selos prateados com a borda de uma moeda tornou-se tão natural como levar o garfo à boca. Há inclusivamente pessoas que não cortam propositadamente uma unha para assim poderem raspar melhor. Depois há uma grande variedade de raspadores. Há os aspirante-a-compulsivo, que são aqueles que só compram quando não está ninguém e levam os cartões para os rasparem no recato da sua casa, prolongando assim uma esperança deliciosa de que lhes vai sair prémio. Depois há os jogadores compulsivos-reservados que são aqueles que raspam na hora, mas escondem com a mão ou viram-se de lado para ninguém ver a intimidade do raspanço. Há ainda os compulsivos-assumidos, que são aqueles que compram e raspam às claras e fazem questão de mostrar aos vizinhos o cartão (tenha ele prémio ou não) e contar histórias sobre raspadinhas. E por fim há os compulsivos-inveterados que são aqueles que compram desenfreadamente carteiras de raspadinhas e encham o balcão e as mesas de esterco de prata raspada. No meio desta febre viral (qual corona vírus), não é de estranhar que muitos gastem o que têm e o que não têm. Quem esfrega as mãos é a Santa Casa que, a respeito do tal estudo, nada disse...percebe-se porquê...

Mas além da raspadinha, há um outro jogo, mais obscuro ainda, onde o pessoal estoura o guito à força toda. Estou a referir-me aos famosos concursos do 760 XXX XXX que enchem os programas das televisões generalistas, com promessas de dinheiro em cartão que se pode gastar no que quiser, viagens e até de carros topo de gama. Por apenas 1€+IVA, que é o custo de cada chamada, um comum mortal habilita-se a sair da cepa torta. Estes programas são um autêntico massacre à sanidade mental e à paciência dos espectadores. Os apresentadores, com a lição bem estudada, passam horas e horas a pedirem para ligar. O Pepe Rapazote ficou célebre num desses programas de chacha ao dizer que o prémio até podia ser usado junto do seu dealer para comprar droga! Coitado, foi saneado e nunca mais foi chamado para semelhantes programas (sorte a dele!). Tal como a raspadinha, este jogo é muito apelativo: possibilidade de prémios aliciantes; facilidade de acesso (as pessoas nem precisam levantar o rabinho do sofá), simplicidade (só ligar), baixo custo (1 Euro e pico por cada chamada), e resultado quase imediato (no decorrer do programa). Para prender a atenção dos espectadores, as televisões, finórias, condimentam estes programas com música pimba, bailaricos, comida, bebida e festas que é afinal o que o povo gosta. 

A respeito destes jogos do 760 XXX XXX muito pouco se sabe. Há um limite de 10 chamadas diárias para cada número, mas são tantos os números que as pessoas podem gastar dezenas de Euros por dia. Quantas pessoas ligam? Qual o valor das chamadas? Quanto é que as pessoas gastam? Acredito que tal como na raspadinha, muita gente deve ser completamente viciada nestes jogos de chamadas de valor acrescentado, que fazem inchar as contas telefónicas para valores astronómicos. Tal como na raspadinha, haja quem investiga este assunto também.

Artigo publicado na Lancet