segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

O dia de Natal

O Natal é uma das épocas mais aguardadas do ano. As ruas e as casas enchem-se de luzes, as pessoas reencontram-se e confraternizam à volta da lareira, as mesas aburguesam-se com os melhores serviços e com enfeites natalícios, as travessas transbordam de iguarias, no ar paira alegria, satisfação e, ainda que por breves momentos, paz. O motivo: a comemoração do nascimento de Jesus. Mas se há comemoração que tem sido adulterada, o Natal é uma delas.

Em primeiro lugar e, para um vasto número de pessoas, o Natal perdeu toda a significância espiritual e religiosa e está confinado a uma vertente meramente material e consumista. Para muitas pessoas, o Natal é simplesmente sinónimo de troca de prendas, de muitas prendas. Por estes dias, os centros comerciais estão transformados em autênticos templos de consumo, onde as pessoas, desvairadas com a ilusão do cartão de crédito, se acotovelam nas lojas atulhadas de gente e se atropelam nos corredores, carregadas com sacos, de onde espreitam embrulhos com lacinhos. Deambular por estes antros de consumo em vésperas do Natal é uma espécie de teste à resistência física e mental a que, alguém com dois palmos de juízo, não se sujeita. O lixo, que se amontoa às rumas pelas ruas a partir do dia 25, é a face mais crua e triste deste Natal consumista.

Em segundo lugar, apesar do Natal evocar o nascimento de Jesus, há muito tempo que a figura do menino foi ultrapassada pela do Pai Natal. O velhote bonacheirão, barrigudo, com longas barbas brancas e todo vestido de vermelho, que viaja num trenó com um saco de prendas às costas, transformou-se na imagem simbólica do Natal. O pai Natal está em todo o lado, nos anúncios, nos centros comerciais, há corridas de pais Natal, filmes com o pai Natal, coros com dezenas de pais Natal, chocolates em forma do pai Natal, vendem-se disfarces de pai Natal, colocam-se pais Natal em peluche a trepar pelas janelas, pelas chaminés, nos espelhos retrovisores, toques de telemóvel com ho, ho, ho, etc. É uma figura que se propaga de forma viral. Como foi possível o pai Natal assumir este protagonismo? É fácil de explicar: o menino Jesus traz uma mensagem de paz e de solidariedade entre os homens. O pai Natal traz um saco de presentes. A escolha é óbvia. O protagonismo do pai Natal corresponde à vitória da sociedade consumista e, em particular, às estratégias de marketing de grandes empresas multinacionais, nomeadamente da Coca-Cola, que foi quem criou e promoveu a imagem do pai Natal tal como a conhecemos. E depois há o próprio desacerto na data escolhida para a entrega dos presentes. Se a oferta de presentes se inspira no ouro, incenso e mirra com que os reis magos prendaram o menino Jesus, então a data conveniente seria a de 6 de janeiro e não a de 24 de dezembro (apesar de não ser certo que os reis magos chegaram a Belém no dia 6 de Janeiro). Aqui honra seja feita aos espanhóis, que trocam presentes na noite de reis e não na noite de Natal.

A terceira adulteração corresponde à própria data em que é celebrado o Natal. Não existem evidências em documento nenhum de que o nascimento de Jesus tenha ocorrido a 25 de Dezembro. Tal facto é reconhecido pela igreja e o próprio padre Afonso, nas suas intermináveis homilias em Palme, chegou a referir várias vezes que o 25 de Dezembro era uma data simbólica para celebrar o Natal. Foi o imperador romano Constantino que, no ano 314, estipulou que Jesus nascera no dia 25 de Dezembro. Aparentemente, a escolha desta data ficou a dever-se a dois motivos principais. Em primeiro lugar para coincidir e, dessa forma retirar importância, à festa pagã do sol, relacionada com o solstício do inverno, que era tradicionalmente festejada pelos romanos. E, depois, para separar a comemoração cristã de qualquer associação judaica, sugerindo que Jesus não era judeu. Isto porque, algumas tradições judaicas referem o mês de setembro como o mês do nascimento dos herdeiros dinásticos. No século II, Clemente de Alexandria referiu que diferentes grupos Cristãos propunham várias datas para o nascimento de Jesus: 28 de Agosto, 20 de Maio e 21 de Abril. Na Igreja do Oriente, por volta do século IV, impôs-se o dia 6 de Janeiro, que ainda hoje se mantém como o dia de Natal em alguns países, como na Arménia. Ao certo não se sabe qual o dia e o mês do nascimento de Jesus, embora alguns sugiram que terá sido na primavera, tendo em conta à referência aos pastores que guardavam os rebanhos durante a noite feita por S. Lucas.

A quarta grande adulteração corresponde ao ano em que Jesus nasceu. Como se sabe, o calendário do mundo ocidental mede o tempo em função do nascimento de cristo, havendo um período antes de Cristo (a.C.) e um período depois de Cristo (d.C.). Assim e de acordo com o nosso calendário, Jesus terá nascido há 2015 anos. As únicas fontes de informação sobre o ano do nascimento de Cristo são os evangelhos, nomeadamente o de S. Mateus e o de S. Lucas. S. Mateus refere que Jesus nasceu durante o reinado de Herodes da Judeia (Herodes I, o Grande), que morreu no ano hoje classificado como 4 a.C. Sabe-se isso por causa do historiador romano Josephus que relatou que Herodes (o Grande) morreu depois de um eclipse lunar. E a ciência revela que houve um eclipse na noite de 13 Março de 4 a.C. Além disso, contando os anos do seu reinado ou com base em moedas encontradas em escavações arqueológicas, conclui-se que Herodes governou até 4 a.C. Portanto e de acordo com S. Mateus, Jesus terá nascido em 4 a.C. ou antes. O evangelho de S. Lucas indica, porém, uma data diferente, dizendo que Jesus nasceu no ano do censo judaico do imperador Augusto. Este censo, que aparece documentado noutras fontes históricas, ocorreu no último ano do reinado de Herodes Arquelau (filho de Herodes o Grande), que foi deposto em 6 d.C. Pode-se então concluir que os dois evangelhos diferem em, pelo menos, em 9 anos para o nascimento de Jesus: antes de 4 a.C. (S. Mateus) e em 6 d.C. (S. Lucas). Muitos estudiosos bíblicos referem que Jesus terá nascido em 4 a.C., 5 a.C. ou até em 7 a.C. Este último é apontado pela ciência como tendo ocorrido uma invulgar conjunção de Júpiter e Saturno, que poderá corresponder à estrela que os reis magos seguiram. Independentemente de não existirem provas concludentes sobre o ano exato da natividade, é evidente que a convenção “antes de Cristo” e “depois de Cristo” está errada e nem faz grande sentido. Na prática, quando festejamos a entrada no ano 2000 já estaríamos, em 2004, 2005 ou até mais….e o ano de 2015 apesar de ainda não ter acabado, já terá passado há muito tempo. Parece, pois, que estamos a viver no passado.

Em conclusão, apesar de ser uma das principais festividades do mundo ocidental, o Natal é uma data cheia de equívocos. O momento religioso transformou-se num delírio comercial e de consumo desenfreado. O aniversariante (Jesus) viu-se ultrapassado pela figura barriguda do pai Natal, o novo santeiro que faz o milagre de satisfazer a gula consumista de miúdos e graúdos. Como se não bastasse, comemora-se o nascimento de Jesus numa data que não corresponde à do seu nascimento em termos de dia, de mês e de ano. Isto dá que pensar, uma vez que o que está em causa não é o nascimento de um zé-ninguém, mas sim de uma personagem que alterou o rumo da história e que é considerado o filho de Deus para centenas de milhões de católicos. Um bom Natal para todos!

A adoração dos reis magos ao menino Jesus (pintura de Giotto, 1306)

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Cogumelos silvestres no outono

Apesar do minguar dos dias e da chegada do frio e das chuvas, o outono é uma época de beleza excecional. Nada se compara à luz dos dias soalheiros do outono. É uma espécie de poalha amarela e tépida, que tinge a paisagem de dourado e convida a um passeio ao ar livre. A paisagem, com a sua explosão de cores outonais, estende-nos a mão, solícita. As árvores, antes de se despirem, tingem-se de mil cores que vão do ocre ao castanho, passando pelo laranja e vermelho. No chão, depois das primeiras chuvas, surgem tapetes de veludo verde. E depois há a derradeira oferenda de frutos da época: os suculentos e vistosos diospiros; as romãs, um dos frutos bíblicos, que parecem coroas reais; as castanhas polidas nos ouriços eriçados de picos; as nozes que fazem lembrar cérebros em miniatura; as azeitonas que pintalgam as oliveiras de preto e são a perdição dos tordos; e as laranjas que começam a ganhar cor, cheias de receio das geadas do inverno. Alguns arbustos, como o azevinho e a piracanta, cobrem-se de bagas e de pequenos frutos que são o último festim das aves, antes de chegar a invernia. Para completar o ramalhete destas relíquias naturais do outono falta falar de uns pequenos organismos que, inesperadamente, irrompem do solo para curiosidade e receio das pessoas: os cogumelos. Apesar de se encontrarem durante outras épocas, o outono é o período de excelência para encontrar cogumelos silvestres.

Os cogumelos pertencem ao reino dos fungos do qual fazem parte outros organismos, como as leveduras. A designação de “cogumelo” aplica-se aos chamados macrofungos, ou seja, aos fungos que apresentam grandes estruturas, que mais não são que órgãos frutíferos necessários à sua reprodução. Ou seja, quando ingerimos cogumelos estamos, literalmente, a comer os seus órgãos reprodutivos! Apesar dos cogumelos terem diversas formas, estas estruturas correspondem normalmente ao pé e ao chapéu, cuja função consiste na produção e na dispersão de esporos, que equivalem às sementes das plantas, através dos quais os cogumelos se multiplicam. Para além do tradicional pé e chapéu, o cogumelo é também constituído por micélio, que é uma rede muito fina de filamentos (as hifas), através dos quais os cogumelos absorvem nutrientes e água indispensáveis ao seu crescimento.

Como toda a gente sabe, existe uma enorme variedade de cogumelos em termos de formas, tamanho, estruturas, cores e, claro, de comestibilidade. Muitos dos cogumelos silvestres são comestíveis, sendo saborosos e com propriedades benéficas para a saúde. Depois há a classe dos que não são comestíveis. Muito embora não sendo tóxicos, são cogumelos que não se consomem, porque não têm interesse culinário ou porque simplesmente sabem mal. Depois há a classe dos tóxicos. Aqui distinguem-se os que não são fatais dos que são mortais. A ingestão dos primeiros, apesar de não ser fatal, provoca diversos problemas de saúde, como problemas gastrointestinais, insuficiência renal, efeitos psicotrópicos, etc. Tudo depende do tipo de cogumelo tóxico ingerido. E depois há a classe mais temida de todas, a dos cogumelos venenosos mortais. A ingestão destes cogumelos provoca a fatal síndrome faloidiana. As toxinas destes cogumelos começam por provocar problemas gastrointestinais, a que se segue insuficiência renal e, por fim, o colapso do fígado, que leva ao coma e à morte. Pelo facto de alguns cogumelos tóxicos e venenosos se confundirem com outros comestíveis é que as fatalidades são relativamente frequentes. A ingestão de Amanita phalloides, por exemplo, é responsável por 95% dos envenenamentos. Por isso, o consumo de cogumelos silvestres é uma prática que envolve riscos, sobretudo quando não há certeza sobre a comestibilidade de um determinado cogumelo. Nesse caso, será preferível ir ao supermercado mais próximo e comprar uma lata deles. Não são tão saborosos, mas podem-se comer à vontade. 

Em Palme, os cogumelos (muitas vezes chamados "tortulhos" pelos mais velhos) também aparecem com abundância no outono. Apesar dos mais pequenos passarem despercebidos, nos terrenos em pousio e nas zonas florestais são fáceis de encontrar. A sua presença funciona também como bioindicador, ou seja, é sinal de que essas zonas não estão contaminadas com produtos químicos. Num destes dias solarengos de outono, uma atividade engraçada é partir pelos caminhos da nossa terra para desfrutar das belas cores da paisagem, dos seus frutos e encontrar estes curiosos e coloridos organismos que emergem do solo. Numa pequena caminhada encontrei estes belos exemplares que se seguem. Os dois últimos (Macrolepiota procera) acabaram num rico estufado, mas alguns deles, de acordo com um livro sobre a especialidade, são tóxicos. Mas olhar para eles não faz mal nenhum! Mas nunca se esqueçam que todos os cogumelos são comestíveis, mas alguns deles só o são uma única vez!
























quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Resultados das Legislativas 2015 e os valores da abstenção

No passado dia 4 fomos chamados a votar para eleger os novos deputados da Assembleia da República e o novo Governo. Em Palme praticamente não se viram ações de campanha, não houve propaganda, nem se escutaram as ruidosas caravanas políticas. A eleição decorreu com normalidade e os resultados saldaram-se por mais uma vitória absoluta da coligação PAF. Aliás, no concelho de Barcelos, apenas nas freguesias de Arcozelo e de Cambeses, a coligação não ganhou. Nas restantes, a concorrência foi esmagada pelos dois partidos conservadores que, como é sabido, têm uma grande falange de apoio em todo o norte do país.

Em Palme, a coligação obteve 384 votos, ou seja, 62% da votação. Por outras palavras, a coligação teve mais votos que todos as outras forças juntas. O segundo partido mais votado foi o PS, que registou 150 votos. As restantes forças tiveram votações residuais (59 ao todo). Face aos resultados das Legislativas de 2011, a coligação obteve em Palme menos 66 votos e o PS somou mais 56. Mas foi o Bloco de Esquerda que, percentualmente, mais viu crescer a votação na freguesia, pois mais que duplicou o valor de 2011.

A abstenção em Palme cifrou-se em 36,6%, tendo sido inferior à registada a nível nacional. E era precisamente a este ponto que eu queria chegar. Para falarmos da abstenção, temos que analisar a questão do rigor dos cadernos eleitorais. Vejamos o caso de Palme. Para estas eleições, o caderno eleitoral de Palme continha 973 cidadãos eleitores inscritos. Ora os Censos de 2011 dizem-nos que havia 1073 residentes na freguesia, dos quais 176 tinham menos de 14 anos de idade. As contas são fáceis de fazer. Se subtrairmos os 973 eleitores à população registada em 2011, obtemos 100 pessoas, ou seja, menos do que aquelas que tinham uma idade inferior a 14 anos em 2011.

Mas se pegarmos nos dados das Legislativas de 2011 essa comparação torna-se mais simples porque corresponde ao ano em que foi feito o Censo. Para essa eleição estavam inscritos 989 eleitores. Logo, deveriam existir 89 jovens e crianças na freguesia com menos de 18 anos (1073-989=89). Porém, o Censo diz-nos que existiam 255 pessoas na freguesia com menos de 19 anos de idade. Embora não se saiba quantos tinham exatamente 18 e 19 anos em 2011, pode-se afirmar com alguma segurança que o caderno eleitoral desse ano teria cerca de 150 pessoas a mais inscritas para votar. O que configura um erro grosseiro porque 150 pessoas correspondem a 14% de toda a população residente na freguesia.

Desta forma pode concluir-se que o caderno eleitoral de Palme, tal como deverá suceder nas restantes freguesias do país, é fictício, pois contém mais inscritos do que habitantes votantes. Em parte isso explicar-se-á pelos óbitos que não são removidos das listas atempadamente. A correção destes erros não interessa a muita gente, a começar pelos autarcas, uma vez que o número de mandatos e as próprias transferências baseiam-se no número de eleitores existentes em cada freguesia e em cada município. Portanto, quantos mais eleitores fantasmas existirem nas listas, tanto melhor. Nos meios pequenos, onde toda a gente se conhece, como em Palme, era relativamente simples detetar os erros do caderno eleitoral. Bastaria para tal pegar nas listas e analisar se cada um dos inscritos ainda está entre nós ou não.

Um outro problema, mais difícil de detetar, mas que também exerce uma influência direta na abstenção, é a questão da emigração. Ao longo dos últimos anos, um grande número de portugueses foi trabalhar para o estrangeiro. Em Palme, houve famílias inteiras que emigraram, mas muitas continuam com domicílio registado na freguesia e o nome destas pessoas continua a aparecer no caderno eleitoral. Mas como a maior parte destas pessoas não vêm cá propositadamente votar, estes emigrantes acabam por engrossar as estatísticas da abstenção. Acredito que a emigração tenha sido um dos motivos que mais contribuiu para o aumento da abstenção registado nas últimas eleições, pois foram centenas de milhares de pessoas que deixaram o país ao longo dos últimos anos.

Para além dos mortos e dos emigrantes, há uma terceira razão que também terá concorrido para o aumento da abstenção - o descrédito dos políticos e da política. A este nível os governantes têm-se esforçado afincadamente para afastar as pessoas da política. Mentiras e aldrabices, sacanices impostas ao povo, falsas promessas, ex-governantes presos, outros suspeitos e investigados por crimes de colarinho branco, espoliação de direitos básicos, atropelos de leis e da própria Constituição, precaridade, medo, chantagem e empobrecimento impostos às pessoas e, acima de tudo, a falta de esperança num futuro melhor. À falta de alternativas e à desacreditação na classe dos políticos, as pessoas alheiam-se e afastam-se. Interrogo-me se um dia ainda chegaremos ao cenário descrito por Saramago em “Ensaio sobre a Lucidez”? Nesta história, o escritor fala-nos de uma eleição em que a maior parte dos eleitores depositou o seu voto em branco na urna. Como foi isto possível? questionavam-se os candidatos. “O voto em branco poderia ser apreciado como uma manifestação de lucidez por parte de quem o usou” disse o ministro da justiça no livro de Saramago. Será que não vai acabar por acontecer isso na realidade?

Resultados das Legislativas 2015 em Palme e sua comparação com resultados de 2011


quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O cultivo de amoras

Como toda a gente sabe, Palme é uma freguesia rural, com extensas áreas ocupadas por manchas florestais e de terrenos agrícolas. A festa das colheitas realizada no último fim-de-semana é disso mesmo um bom exemplo. Porém e, ao contrário do que sucedeu no passado, a economia de Palme já não depende nem da agricultura, nem da floresta. Porque uma coisa são os recursos, as riquezas e as potencialidades de uma terra. Não há dúvida que os solos, a floresta e a água são as maiores riquezas da freguesia. Mas uma coisa bem diferente é a origem dos rendimentos das pessoas. E foi precisamente neste capítulo que se assistiu a uma grande transformação, porque a maior parte das pessoas deixou de ir buscar os seus rendimentos à terra e à floresta. Basta olharmos para os dados do Recenseamento de 2011. A percentagem de residentes em Palme com atividade económica na agricultura era de apenas 5%. Os rendimentos provêm agora da indústria, da construção civil e dos serviços. Há 40 ou 50 anos a situação era bem diferente, pois a agricultura era a principal (e para tantos a única) fonte de rendimentos. Era, portanto, uma agricultura de subsistência.

Atualmente, a agricultura é encarada como uma atividade complementar, parcial, que é praticada em horário pós-laboral e ao fim-de-semana. É vista, não tanto como uma fonte complementar de rendimentos (em muitos casos é mais uma fonte de despesas), mas como uma fonte de produtos destinados ao auto-consumo e aos animais. E engloba ainda uma componente cultural, que consiste em zelar e amanhar o património familiar herdado e, como se sabe, o sentimento de posse continua muito enraizado em toda esta região. A pequena dimensão da propriedade e a fragmentação dos terrenos foram dois dos principais fatores que mais contribuíram para o abandono dos campos e da floresta. Esta estrutura fundiária não dá qualquer efeito de escala às produções, impede a mecanização, gera desperdícios de tempo e de recursos. Mas esta é a realidade que temos e o emparcelamento é algo que ninguém quer ouvir falar.

Em consequência disso, a freguesia e, em particular, a agra é um mosaico de cores e de formas. Campos recortados e emparedados nas mais diversas formas e feitios, árvores por aqui e por acolá, ramadas e fiadas de vinha a bordejar as leiras, que são servidas por um emaranhado de caminhos e de atalhos. Nesta amálgama, onde o verde predomina sempre, o milho continua a ser a cultura de excelência de verão, destinando-se maioritariamente à produção de forragens e não tanto ao grão. No inverno predominam as culturas arvenses. Depois há a batata, o feijão, o centeio (cada vez mais em desuso), a vinha e a oliveira. Às vezes encontramos as várias culturas ao mesmo tempo em cada uma das parcelas num regime de grande promiscuidade.

Estas são as culturas tradicionais que temos na freguesia. Porém, ao longo dos últimos anos, tem-se vindo a impor uma cultura alternativa, que vai ganhando cada vez mais adeptos. Estou a falar da amora silvestre (Rubus spp.). O cultivo das silvas está a ser uma aposta de muitos proprietários dada a resistência e a facilidade de crescimento da planta e as suas baixas necessidades. Não precisa de podas, sulfatos, desbastes de ervas daninhas, fungicidas, pesticidas, fertilizantes, regas, nada de nada. É deixá-las crescer, sendo apenas necessário controlá-las para que não invadam os terrenos vizinhos (o que já acontece com extraordinária frequência). E, em Palme, o cultivo da amora silvestre vê-se nos mais diversos sítios: nas bouças, nas bordaduras dos caminhos, no meio das leiras, por cima dos rios, em quintais contra as casas, pelas paredes que dividem as leiras, por cima de ramadas abandonadas, empoleiradas em árvores, etc. Estão em todo o lado!

Apesar das silvas ocuparem cada vez mais área na freguesia, causa-me estranheza nunca ter visto ninguém a aproveitar as amoras. O que me deixa na dúvida: serão estas silvas propositadamente cultivadas ou resultarão do abandono dos campos e, não raras vezes, do descuido e da preguiça de alguns? Tenho que tirar isto a limpo....Segue-se que as amoras são frutos riquíssimos em vitaminas e poderosos antioxidantes, sendo utilizados em diversos produtos alimentares (iogurtes, doces, gelados, bebidas, etc.). Há inclusivamente empresas (por exemplo, a Sortegel) que pagam a 1,5€ por kg de amoras silvestres. Nada mau!

Tenho o pressentimento que, no futuro, a área dedicada ao cultivo das amoras em Palme irá continuar a crescer, pois os mais novos revelam uma grande apetência pelo cultivo desta espécie. Só espero que as silvas não se transformem numa monocultura, porque senão será conveniente começar a pensar em mudar o nome da freguesia. Se assim for, ao lado dos Feitos (cujo nome vem de fetos) passaríamos a ter a freguesia de Silvedos ou de Silvados (Silveiros não dá porque já existe uma freguesia com esse nome)...

Propriedade com produção intensiva de amoras

Ribeiro bordado a silvas

Reconversão de culturas: ramada de silvas a substituir a vinha

Terreno com cultivo em regime promíscuo de silvas e mato

Bela faixa de silvas a orlar ribeiro

Cultivo de silvas junto a caminho para facilitar a apanha

Silvas ornamentais em habitação rústica

Cacho de amoras silvestres

domingo, 30 de agosto de 2015

Festas de Agosto

Toda a gente gosta de Agosto. É o mês das férias, do calor, dos banhos de sol e de mar, dos passeios e das viagens, das churrascadas e das patuscadas ao ar livre, das noitadas nas esplanadas com tremoços e cerveja, do reencontro com os que estão distantes, dos engarrafamentos e entupimentos nas praias e locais de diversão, das festas e romarias, dos bailaricos à volta de capelas iluminadas, dos amores e das paixões fugazes como o calor, que logo se dissipa com as névoas vindas do mar.

No mês de Agosto, Palme enche-se de gente. É precisamente nesta altura que se tem uma noção mais clara da enorme quantidade de pessoas que emigraram. Em muitos casos foram famílias inteiras que deixaram para trás a terra, os amigos e os restantes parentes. Ao certo, quantas pessoas de Palme estarão emigradas? Muitas com certeza como é possível constatar pelo movimento que se nota durante o mês de Agosto, nomeadamente nas festas, onde as pessoas acorrem em maior número. E este mês não faltaram ocasiões festivas para as pessoas se juntarem. Ao todo foram três fins-de-semana seguidos de festas.

No dia 9 comemorou-se o Dia da Freguesia, com comes e bebes à borla, animação musical, atuação do Auto de Floripes, exposição de artesanato, entre outras atividades a decorrerem debaixo de um calor burro.

No fim-de-semana seguinte nova festa, desta vez em honra da Senhora dos Remédios. Esta festa, como é sabido, esteve em risco de não se realizar, pois a Comissão nomeada não tomou conta. Com o passar do tempo, a Fabriqueira lançou o repto para que se formasse uma nova Comissão. Os pedidos caírem em saco roto mas, já tardiamente, acabou por organizar-se uma nova comissão que se encarregou de preparar a festa. O grupo trabalhou bem e a festa lá se fez nos moldes habituais. Houve comediantes (mais desbocados do que recomenda uma festa religiosa), grupos musicais, espuma e dj’s, uma sessão de fogo-de-artifício muito gabada e os atos religiosos do costume, com destaque para a sempre majestosa procissão. A festa teria corrido melhor se não fosse a chuva que caiu, quer no sábado ao início da noite, quer no domingo de manhã. Na verdade, a chuva na festa da Senhora dos Remédios é relativamente frequente e diz-se mesmo que a Senhora é herdeira da chuva. Isto tem uma explicação. Antigamente era frequente fazerem-se preces e romarias à capela da Senhora dos Remédios a pedir chuva. E dizem os mais velhos que estas rezas resultavam pois, mais tarde ou mais cedo, acabava sempre por chover. E tanto assim foi que a chuva pela altura da festa começou a ser habitual. Isso levou a que a festa, inicialmente celebrada no início de Setembro (como a da Senhora dos Remédios de Lamego), passasse para meados de Agosto. Mas não adiantou muito porque a chuva, ano sim, ano não, lá vai marcando a sua presença.

Volvida uma semana, nova festa, desta feita no campo de futebol, na inauguração das novas e sumptuosas instalações desportivas. A obra foi abençoada e benzida pelo padre e pela água que desabou das nuvens, houve novamente comes e bebes à borla para todos, animação musical e o foguetório que estas ocasiões recomendam. Como é do conhecimento de todos, esta obra foi concluída em tempo recorde com o apoio de diversas entidades e pessoas, nomeadamente do Sr. Leitão. Sem o seu empenho e os seus generosos donativos não teria sido possível concluir, em tão pouco tempo, uma obra desta envergadura e com a qualidade que lhe é reconhecida. É um verdadeiro mecenas e a freguesia podia erguer-lhe uma estátua, porque ele bem o merece.

E foi assim que se passou o mês de Agosto em Palme, com três festas consecutivas, coisa inédita que propiciou diversos momentos de confraternização e de convívio entre as pessoas da terra. O pessoal até parece que está a ficar mal habituado, pois já se perguntava por aí onde era a festa do fim-de-semana de 29 e 30?



sexta-feira, 31 de julho de 2015

O sinal sem sentido

No post do passado mês de Abril falei de algumas tradições e características que fazem de Palme uma terra única. Pois bem, hoje não venho falar de tradições, mas sim de algo que também deverá ser único. Ou que, pelo menos, é um pouco bizarro.

Talvez os mais distraídos nunca tenham reparado, mas ele há coisas do arco-da-velha aqui na nossa terra. Quem desce de Vila Chã para Palme, antes de chegar ao cruzamento da Balança, depara-se com um sinal de trânsito deveras curioso e até intrigante. Depois da última curva à direita, os condutores encontram um sinal de STOP sem que nada faça prever a necessidade dos veículos ali pararem. E uns metros à frente do STOP aparece um novo sinal, um triângulo invertido, informando os condutores que devem ceder prioridade novamente. Como é bom de imaginar, a ordem dos sinais parece estar também ela invertida: primeiro devia surgir o triângulo e só depois o STOP. Ou então o triângulo refere-se à perda de prioridade no cruzamento da Balança, onde surge novo STOP. Ou então o primeiro STOP só está ali a pregar uma partida aos condutores, como parece, de facto, ser o caso.

No outro dia, vinha atrás de um veículo de ensino de condução, com o respetivo L bem visível na retaguarda. Já agora, para quem não sabe, o L vem de lesma significando, portanto, veículo lento. Lá vinha eu atrás da cachopa, a 20 km horários, quando ao chegar ao tal STOP, no meio do monte, ela, cumpridora, estacou o carro. Estivemos ali uns segundos naquilo, o instrutor gesticulou e o carro, com um solavanco, lá iniciou nova marcha. Foi aí que dei conta do STOP, um tanto ou quanto esverdeado da sombra, mas ali estava ele, com toda a sua autoridade hexagonal. Uns dias depois, ao passar novamente no local, procurei averiguar o porquê daquele sinal ali estar. Na verdade não encontrei nada que o justificasse: nem entroncamento, nem cruzamento, nem portagem, nem passadeira sequer. Apenas um pouco mais à frente, junto ao triângulo invertido, se vislumbra um pequeno atalho à direita, que se encaminha para o meio do monte. Será trilho de coelho? De raposa? De javali? De brasileira? Não sei, mas não desconsiderando a proteção que a fauna local (e exótica) nos deve merecer, parece manifestamente exagerado estar ali aquele sinal a obrigar os carros a pararem ou, melhor dizendo, a obrigar os condutores a cometerem uma infração, pois ali ninguém para. Nem faria sentido que parassem.

Seria bom que o STOP fosse dali retirado e, depois de uma boa esfrega com uma vassoura de piaçaba, fosse colocado numa rua onde realmente faz falta – e não faltam por aí ruas a precisar dele. Assim, os condutores cumpridores ficariam mais aliviados, pois já não eram obrigados a parar no meio do monte. No código da estrada há um sinal que indica sentido proibido. Agora há uma nova categoria: o sinal sem sentido, como é o caso deste STOP. É que na verdade faz tanto sentido estar lá este sinal como a placa “pare, escute e olhe” a advertir os condutores para a passagem do comboio…


terça-feira, 30 de junho de 2015

A festa do Santo António

Ao fim de quase 30 anos voltou a fazer-se a festa do Santo António em Palme. Depois da Capela do Senhor dos Aflitos ter sido restaurada, já tinham havido algumas tentativas de recuperar a festa, nomeadamente com missas cantadas e sermões pelo Santo António. Até que este ano foi constituída uma comissão de festas à última da hora, que foi responsável pela organização do evento.

Na década de 1980, a festa em honra do Santo António e São Silvestre (era assim que era conhecida) era uma das mais badaladas das redondezas. O concurso/mostra de gado era um dos ex-libris da festa, pois como toda a gente sabe, o Santo António, para além de casamenteiro, é o patrono dos animais. Nessa altura, a maior parte das pessoas tinha gado e os mais briosos engalanavam os seus animais e participavam na romaria, levando o animal mais gordo, o mais asseado, a vaca com o úbere maior, etc. Era uma prova muito concorrida, com muitas cabeças de gado, onde as pessoas acorriam em força para apreciar os animais, discutir a justiça dos vencedores, dar dois dedos de conversa. Ao sábado havia também as entradas das bandas de música ao som de ruidoso foguetório, sem paralelo na região nessa altura. À noite, arraial com atuação de grupos musicais, que terminava com o céu aberto de claridade do fogo-de-artifício e do fogo preso. Ao domingo à tarde e, depois da parte religiosa, lembro-me da representação do Auto de Floripes, que era realizado à fresca, por debaixo de uma ramada de vinha moranga, onde o Brutamontes saltava como uma cabrita desvairada. Se a memória não me atraiçoa, a última festa realizou-se em 1986 e estoirou por causa do elevado orçamento que, à data, já era incomportável para a freguesia. A partir de então passou a realizar-se apenas a festa da Senhora dos Remédios e, mais irregularmente, a do Santo André.

Não deixa de ser curioso notar que a festa do Santo António voltou a fazer-se num ano em que esteve em risco a realização da festa da Senhora dos Remédios. A comissão nomeada para organizar a festa não quis saber e assobiou para o ar como se não fosse nada com eles. Com o passar do tempo, a Fabriqueira apelou à boa vontade dos mais voluntariosos para se organizar uma nova comissão. Mas ninguém se chegou à frente. E quando já se perspetivava uma festa meramente religiosa, assegurada pela Fabriqueira, eis que se formou uma nova comissão para organizar a festa da Senhora dos Remédios. Enganaram-se portanto os mais pessimistas, pois não haverá apenas uma festa, mas sim duas (isto sem contar com a do Dia da Freguesia).

A festa do Santo António foi recatada e, presume-se, não muito dispendiosa. Contou com dois momentos musicais, um no sábado à noite, outro no domingo à tarde. Fogo sem exageros e sem devaneios ao contrário do que se vê nas terras vizinhas. Barraquinhas de comes e bebes. Missa cantada, sermão com pregador de fora, procissão com alguns andores adornados por flores naturais. Simples mas bonitos. A festa foi, contudo, ensombrada por dois acontecimentos. No sábado houve um funeral, que é sempre um momento triste que refreia o clima de festa. E depois, a chuva que caiu no sábado à noite e que terá afastado muita gente de participar na festa. Alguns mais céticos disseram mesmo que a chuva foi encomendada pelo Santo António para, dessa forma, demonstrar o seu desagrado para com o regresso da festa ou, pelo menos, para com os bailaricos, que são sempre a parte mais concorrida. E, neste último ponto, há que dar a razão ao santo, pois a mim também me causa espécie ver tantas centenas de pessoas viradas para o palco, enquanto a capela está vazia e o pobre santo, em honra de quem se faz a festa, totalmente abandonado e esquecido no seu nicho ou pregado no estrado do andor. Até mete dó! E ainda por cima, de vez em quando, tem que aguentar com saraivadas de asneiras e de coriscos dos artistas em palco. Veja-se o “espetáculo” da Ti Maria da Peida de há dois anos na Senhora dos Remédios! Santo é santo, mas até a paciência de santo deve ter limites….

Segue-se que já está nomeada uma nova comissão para organizar a festa do Santo António para o próximo ano. E surpresa das surpresas, no elenco da comissão figuram diversas mulheres, algo completamente inédito na freguesia. Esta é mais uma prova de que as coisas em Palme estão mesmo a mudar e de que, como referi no post de Abril, a tradição já não é o que era! E ainda bem!...



sexta-feira, 29 de maio de 2015

O misterioso desaparecimento da máquina multibanco

Ao longo dos últimos anos, aconteceram diversas histórias em Palme que nunca foram totalmente esclarecidas tendo, por isso, passado para o domínio dos mistérios nunca desvendados. Vejamos alguns exemplos. Ao certo, nunca se soube quem decepou as videiras do antigo presidente da Junta numa propriedade sua, no lugar do Talho. O sumiço do dinheiro do cortejo, que era para recuperar a residência paroquial, foi também algo muito nebuloso. Misterioso foi também o autor do pasquim lançado na altura, onde se falava do suposto destino do dinheiro. A identidade do poeta que fez uns versos em vésperas das últimas eleições autárquicas, a respeito dos baldios que eram da freguesia e que foram apropriados por particulares, com o consentimento das várias Juntas, também nunca foi conhecida. Desconhecido é também o agricultor notívago que, nos últimos dias, tem andado pela calada da noite, no Outeiro, a tirar as batatas à do Couto. Como podem ver, não faltam histórias por esclarecer na freguesia. A estas pode acrescentar-se o recente desaparecimento da máquina multibanco, a respeito do qual correm várias teorias, que catapultaram o tema para o domínio do fantasioso e do mistério insondável. Ou pelo menos, assim o fazem crer alguns.

Um dos primeiros rumores a circular foi o de que a máquina tinha sido roubada. O roubo teria sido, naturalmente, praticado por alguém muito calejado no ofício, pois não há quaisquer sinais de rebentamento do caixote de betão, nem de estroncamento da fechadura. A não ser que a máquina tivesse sido escaqueirada à martelada e retirada às peças pelo postigo. Mas não terá sido esse o caso, porque há testemunhas oculares que viram a máquina a ser retirada à luz do dia por técnicos, supostamente por conta de uma empresa. E, então, entra aqui a segunda teoria ao melhor estilo de Hollywood, que supõe que quem recolheu a máquina não foi nenhuma empresa, mas sim um grupo de larápios profissionais. Tal tese é sustentada no argumento de que não existem afinadores de máquinas multibanco e de nunca se ter visto em lado nenhum uma máquina que tivesse sido retirada para reparação (alguém já viu?!). Os defensores desta hipótese acreditam que foi tudo uma manobra de diversão dos meliantes que, dessa forma, puderam levar a máquina para casa, para poderem sacar o dinheiro nas calmas. Uma terceira teoria em que alguns (poucos) acreditam foi a de que o desaparecimento da máquina se deveu a fenómenos de origem sobrenatural. Só alguém de uma civilização mais avançada ou dotado de poderes especiais era capaz de retirar a máquina, deixando intacto aquele caixote maciço de betão armado…

Face a estas teorias mais ou menos mirabolantes, a Junta teve necessidade de acalmar os ânimos da população, dando justificações sobre o sucedido. Foi então tornado público que a máquina avariou, porque apesar de estar carregada, não dava o pilim a ninguém. Estava, portanto, com claros sintomas de sovinice. Como não foi possível resolver o problema no local, a máquina teve que ser removida para reparação em local apropriado. Esta é a justificação oficial do desaparecimento do multibanco. O problema é que a reparação está a demorar tanto tempo que as pessoas começam a desesperar pela falta do multibanco, como se o equipamento estivesse instalado na freguesia há muitos anos. Não é o caso pois, como deverão estar recordados, a máquina foi colocada no final do verão do ano passado. Porém, este descontentamento só vem demonstrar a importância e a falta que este equipamento está a fazer.

A demorada reposição do equipamento tem levado a que muitos já não acreditem no regresso da máquina multibanco. Por isso, já se vão ouvindo propostas de usos alternativos para o caixote de cimento que ali está e que até mete dó, com aquele postigo escancarado e escuro, virado para quem passa na estrada. Alguns admitem que o casebre tem todas as condições para funcionar como cortelho para galinhas ou coelhos, faltando apenas colocar uma rede na janela, para evitar que os animais cativos saltem para a via pública. Outros acreditam que podia funcionar como uma luxuosa casota para um pastor alemão, de coleira eriçada com picos, que assim ficava a montar guarda ao edifício da Junta. Há também quem proponha que a construção seja reconvertida numa guarita, com presença permanente de um guarda de honra, munido de espada, para rondar a entrada da sede da Junta, numa marcha cadenciada para trás e para a frente. Numa perspetiva mais comercial, já ouvi pessoas que estarão interessadas em alugar o caixote à Junta para ali instalar pequenos negócios, como um quiosque de venda de jornais ou uma lojinha de gelados. Nestes dois últimos casos até acho as ideias interessantes e com pernas para andar...


Apesar de tudo quero acreditar que estes cenários são do domínio da ficção e que a casota não estará devoluta durante muito mais tempo, retomando a função para a qual foi construída. No entanto, custa a compreender a demora de tal reparação. Quero também acreditar que o problema residirá na (in)capacidade do banco em resolver o problema. Quando alguma máquina não tem conserto ou o arranjo fica muito caro, substitui-se por outra. Será que o Crédito Agrícola está tão mal que não consegue reparar ou substituir a máquina? Há algum contrato que permita acionar uma cláusula de incumprimento por um serviço não prestado? E se o impasse continuar, não será melhor pensar num plano B? Esperemos que estas dúvidas infundadas que por aí correm se dissipem para que, de facto, a questão da máquina multibanco não vá engrossar o já vasto domínio dos mistérios inexplicáveis que tem acontecido na freguesia.


PS a 10-06-2015: Uma semana depois de ter escrito este post, eis que a máquina multibanco regressou! Como é bom de ver, a publicação deste texto foi fundamental para que a máquina regressasse tão depressa. Espera-se é que agora venha para ficar definitivamente....

segunda-feira, 27 de abril de 2015

A tradição já não é o que era

Palme é uma terra com algumas características únicas. Apesar de algumas delas se terem vindo a perder ou de terem esmorecido, ainda temos traços autênticos e distintivos. Raça curiosa esta, a de Palme!

Na igreja, os homens separavam-se das mulheres. Entravam pela sacristia e ficavam lá em cima, junto ao altar-mor, mais próximos do sacerdote e do sacrário. Outros penetravam pela porta principal mas logo trepavam pelas escadas que, à direita, conduzem ao coro. Sempre acreditei que esta separação entre homens e mulheres era para evitar tentações, pensamentos pecaminosos, desejos proibidos, que seriam tanto mais graves por serem cometidos dentro da própria igreja. Só os velhotes, carregados de doenças e com a carne domada pela idade, se misturavam despudoradamente com as mulheres, para se poderem sentar durante as práticas intermináveis do padre António. Homem que é homem teria que aguentar ali, de pé, estoicamente, cerimónias às vezes com mais de duas horas de duração, a balouçar entre a perna esquerda e a direita, para descansar os músculos. Antes desmaiar e sair em braços, do que ficar em baixo, misturado com as mulheres, a pretexto dos bancos. Agora as coisas já não são assim. Vão menos, muito menos pessoas à missa e já são poucos os homens que ocupam o seu lugar de honra na capela-mor ou no coro. Mas mulheres por lá, nenhuma!

Nas procissões assistia-se a idêntico sectarismo. Os homens à frente (sempre mais importantes que as mulheres como manda a igreja), em duas colunas alinhadas; as mulheres atrás de todo, num magote desordenado, numa espécie de carro-vassoura da procissão. Aqui continua-se exatamente na mesma. Apenas se nota uma menor participação de ambos os géneros nas procissões e dá-se pela falta do padre António no meio da coluna, de olhar inquisidor, a contar o número de homens que vão na procissão, para perceber quantas destas ovelhas se tinham tresmalhado em relação ao ano anterior.

Uma outra tradição que se tem vindo a perder é a de pôr o altifalante da torre da igreja a tocar antes das missas. No tempo em que havia a missa “da manhã”, o altifalante, com o botão do volume no máximo, despertava a freguesia logo a partir das 6:30 H da matina. Ora, especialmente no inverno, 6:30 H é noite velha, o sol, preguiçoso, ainda anda lá pela Europa de leste. Mas em Palme era hora de acordar ou, para alguns recém-chegados da noitada de sábado, de não conseguirem adormecer. Porque era impossível não ouvir o altifalante! Mesmo os mais ensonados e incomodados com a grafonola não deixavam de trautear, ainda que mentalmente, as cantigas da Ana Malhoa (o u depois do ó, faz o a e i ó u…); do Jorge Ferreira (o anel que tu me deste era de vidro e quebrou-se…); ou das Gamelinhas de Palme (menina que vais à fonte, diz-me o que é que vais buscar…). Mesmo nas freguesias vizinhas ouviam-se comentários desagradáveis por causa dos incómodos causados pelo altifalante de Palme que, àquela hora da madrugada, até um morto acordava. Entretanto essa missa “da manhã” acabou, quem habitualmente colocava a música já morreu e, agora, só por festas e por desfastio é que sai música da torre da igreja. Nos restantes dias, silêncio apenas quebrado pelo toque soturno do sino.

Uma outra imagem de marca de Palme eram as vacas (as quadrúpedes, claro). Ao início da manhã e ao final da tarde, os caminhos e a estrada ficavam entupidos de vacas. Eram dezenas, talvez centenas delas que, no seu vagar bovino, iam descarregar os úberes inchados às salas de ordenha da terra. O resultado destas peregrinações era as ruas ficarem atulhadas de excrementos. Nos caminhos, as pessoas tinham que ziguezaguear entre as bosteiras, para não as pisar, como se andassem a jogar à macaca. Na estrada o caso era mais sério, pois as viaturas, velozes, esparrinhavam as fezes a distâncias consideráveis. Era frequente verem-se casas chapiscadas com bosta, as pessoas davam corridas para fugirem aos borrifos, nas paragens dos autocarros, os passageiros abriam guarda-chuvas para se abrigarem dos jatos projetados pelas rodas dos carros. Hoje em dia já não é assim. Só há uma ordenha pública e são poucas as vacas que se veem a circular pela estrada. Mas ainda andam algumas. No mês passado houve até um lamentável acidente, tendo um carro ficado de pantanas depois de abalroar uma manada de vacas. Não morreu ninguém, mas houve feridos e uma vaca com as pernas quebradas. Há tempos vi uma vaca a pastar na agra, foi como se tivesse uma alucinação, impressionou-me quase tanto como se estivesse ali um mastodonte! Há uns anos atrás, mesmo aos domingos, via-se a agra pintalgada de preto e branco, vacas a perder de vista, que bonito, toda a gente tinha gado.

Depois temos as expressões que são exclusivas de Palme. Uma delas ouvia-a aqui há tempos a sair da boca de uma velhota: “hoje o meu home foi à missa a Bustelo!”. Ir à missa a Bustelo – é esta a expressão. Como toda a gente sabe, em Bustelo não há igreja, nem capela, pelo que quando alguém diz que foi à missa a Bustelo, isso significa que não foi à missa. Uma outra expressão também em desuso é responder-se “foi o cerejo” quando não se quer revelar a identidade de quem fez ou disse alguma coisa. O cerejo é uma figura em pedra que está por cima de um portão no lugar do Eirado, pelo que, coitado, não pode sair dali, nem dizer nada. Logo, quando alguém diz “foi o cerejo” é o mesmo que passar um atestado de menoridade a quem pergunta. Seria bom que estas e outras expressões não se perdessem, pois fazem parte da nossa memória local.


Por hoje fico-me por aqui. Confesso que gostei de reler este post. Fala de como éramos, de algumas especificidades nossas, com as quais convivemos e crescemos, que fazem parte da nossa memória, goste-se ou não se goste. Eu, por mim, não renego as minhas origens e gosto destas tradições, que têm que ser vistas no seu tempo e no seu contexto. É curioso isto das tradições, mostram como evoluímos e como continuamos a mudar. A freguesia é como uma pessoa que se vai transformando, lentamente, ao longo do tempo, apenas com uma única diferença: não envelhece. Ou pelo menos vai envelhecendo mais devagar.

terça-feira, 31 de março de 2015

Vinho de maçã (Sidra)

Em Julho do ano passado, por razões profissionais, tive que me deslocar à Normandia. Nunca tinha estado naquela região de França, que está indelevelmente associada à história mundial, por ter sido o local onde as tropas aliadas desembarcaram para rechaçar os ocupantes nazis, dando início à libertação da França. Gostei das paisagens verdejantes e das temperaturas amenas que encontrei, das manhãs com neblinas que me fizeram lembrar o litoral Norte de Portugal. Nessa viagem curta, de apenas uma semana, fiquei a saber que a Normandia é uma das regiões de excelência de produção de sidra, ou seja, de vinho de maçã, por causa das suas especificidades climáticas. Confesso que nunca tinha provado tal bebida, apesar de se encontrar em qualquer superfície comercial. Levei à risca o princípio de “em Roma sê Romano” e resolvi provar a afamada sidra da Normandia. Foi uma agradável surpresa, é uma bebida fresca, aromática, com uma vivacidade e uma tonalidade que recorda o Champagne. Durante esses dias de verão tépido no noroeste de França, ataquei a sidra sempre que pude.

À chegada, resolvi investigar um pouco mais sobre esta bebida. Li alguns documentos, assisti a vídeos relativos ao processo de produção e, vai daí, tomei uma firme decisão: a de tentar produzir uma sidra caseira? Nos próximos parágrafos vou descrever todos os passos que segui para confecionar o meu próprio néctar caseiro de maçã.

Em Palme, 2014 foi um ano de muita maçã, o que facilitou a realização da experiência, caso contrário teria que comprar a matéria-prima. Assim, o primeiro passo foi o de apanhar uma quantidade considerável de maçãs. Apanhei cerca de 20 kg. Procurei utilizar maçãs de três variedades, embora duas delas não saiba ao certo de que variedade são. Uma delas é espriega portuguesa, a outra será royal gala ou starking, a terceira, definitivamente, não sei.

A segunda etapa consistiu em submeter as maçãs a uma lavagem rigorosa. Esta operação era ainda mais importante pelo facto de estar a utilizar algumas maçãs caídas no chão. Foram submetidas a três ou quatro lavagens, tendo ficado bem escaroladas e luzidias. De seguida, foi necessário retirar as partes amachucadas, furadas e putrefatas das maçãs. Aqui os cuidados deverão ser redobrados, pois a utilização de partes podres poderá afetar o paladar da sidra. Acabei por retirar também os caroços, ficando apenas com as fatias sãs e limpas das maçãs.

Figura 1: Maçãs lavadas e partidas

Realizada esta tarefa, a operação seguinte foi a de triturar as fatias/metades das maçãs para converter tudo numa pasta. Pensei em várias opções (liquidificadora, picadora, etc.), mas atendendo à quantidade (e ao que me custaram as máquinas) decidi recorrer à tradicional esmagadora das uvas. Como é bom de ver, este aparelho foi concebido para esmagar uvas, que são mais moles e sumarentas do que as maçãs. Apesar de não reduzir as maçãs a uma pasta uniforme, a esmagadora cumpriu grosseiramente e de uma forma rápida as funções pedidas. No entanto, este será um dos aspetos a melhorar futuramente.

Figura 2: Aspeto das maçãs após trituração

Com as maçãs amassadas desta forma, a quantidade de sumo visível foi reduzida, o que me causou apreensão em relação à quantidade final de sidra que conseguiria obter. Por isso, havia que apertar a pasta para extrair todo o sumo possível. Vai daí, coloquei a esmagada de maçã numa prensa e apertei quanto pude (na forma tradicional, os franceses colocam as maçãs na prensa sob camadas de colmo). Da fonte da prensa começou a sair um fio amarelo e transparente de sumo de maçã. Logo ali, para me compensar do trabalho e do esforço, entornei dois copos do delicioso sumo de maçã natural, extraído por processo mecânico. Ao todo, a fonte jorrou cerca de 13 litros de sumo, nada mau quando pensei que fosse dar uns 3 ou 4 litros. Recolhi um copo de sumo e pesei-o: a escala deu indicações que a bebida teria uma percentagem de álcool de 7%. Nada mau também.

Figura 3: Prensagem da esmagada

Figura 4: Pesagem do sumo

O sumo de maçã foi, então, colocado em garrafões esterilizados de vidro de 5 litros, onde decorreu o demorado processo de fermentação, durante o qual as simpáticas leveduras transformam os açúcares em álcool. Como não tinha borbulhadores para colocar nos garrafões, resolvi furar as rolhas e meter-lhe umas mangueiras plásticas, que foram mergulhadas num recipiente com água. Dessa forma era possível acompanhar a fermentação e evitar o contacto do sumo com o oxigénio. Não acrescentei absolutamente nada ao sumo, nem açúcar, nem leveduras, deixei que o processo decorresse da forma mais natural possível. Ao fim de dois dias, começaram a surgir as primeiras bolhinhas de ar (dióxido de carbono) na água, sinal de que as leveduras já estavam a atuar e que a fermentação se tinha iniciado. Ao contrário do vinho, cuja fermentação é rápida e intensa, a das maçãs é lenta, tendo demorado cerca de 3 semanas.

Figura 5: Sumo em garrafões de 5 l

Figura 6: Preparativos para a fermentação


Depois da fermentação ter terminado, deixei estar a sidra mais uma semana em repouso. A etapa seguinte foi a de passar a sidra para garrafas devidamente esterilizadas. Reparei que havia uma quantidade considerável de pouso no fundo dos garrafões. Para evitar que estes sedimentos fossem engarrafados, utilizei filtros e uma mangueira para passar a sidra, por gravidade, dos garrafões para as garrafas, tarefa durante a qual já deu para provar o néctar ainda cru assim obtido (gostei logo na ocasião). De seguida, coloquei rótulos nas garrafas (tudo muito profissional) com o nome da propriedade onde tenho as generosas macieiras. Por último, as garrafas foram armazenadas para estagiar durante algum tempo.

Figura 7: Vinho de maçã engarrafado e pormenor do rótulo


Em Março, ou seja, quatro meses depois, não aguentei mais e decidi abrir a primeira garrafa. A rolha saiu com estrondo, a sidra apresentava uma cor cristalina, com seiva efervescente e um agradável aroma a maçã. Faltava submeter o néctar à definitiva prova oral das papilas gustativas. O teste superou as melhores expectativas, a sidra é leve, ligeira e equilibrada, com travo inebriante de maçã com notas frescas de citrinos e um final de boca que apetece repetir. Por isso, a garrafa durou apenas uns instantes, tendo convencido uns convivas que também provaram e gabaram a bebida.

Foi esta a experiência, a de produzir, em Palme, uma sidra 100% natural feita a partir de maçãs biológicas e por processos meramente artesanais, que resolvi trazer aqui hoje. Fiquei fã da bebida e vou tentar aperfeiçoar o processo de fabrico no futuro, nomeadamente o da trituração. Em breve vou partilhar convosco outras experiências similares. À vossa!

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Petiscos de passarinho

    Quando ando de carro, tenho o mau hábito de ouvir notícias. Num destes dias, o jornalista, depois de noticiar todas as desgraças ocorridas durante o dia, deu uma notícia que deveras me intrigou. A pretexto das dificuldades económicas que muitas famílias estão a sentir, há um crescente número de pessoas que se dedicam à captura de passarinhos que, depois, são vendidos como aves de gaiola ou são abatidos para serem servidos como petiscos em reputadas casas de pasto. E foi especialmente este último ponto que me fez arrebitar a orelha. Será possível pensei? Provavelmente estão a referir-se a pombos-bravos ou a rolas e dizem que estas aves são “passarinhos”… bah estes jornalistas são mesmo sensacionalistas! 
    Ainda matutava eu no caso quando é colocado no ar um elemento da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves a lamentar-se que esta atividade decorre impunemente debaixo das barbas das autoridades e que parece ter cada vez mais adeptos, como o comprova o crescente número de aves à venda na Internet. Depois de questionado pelo jornalista sobre as aves mais afetadas por esta prática ilícita, o ambientalista deu os exemplos dos piscos, dos chapins, das toutinegras, dos verdelhões e das alvéolas. Bom, afinal, estamos mesmo a falar de passarinhos, concedi eu. A notícia terminou com o ambientalista a dizer que, se nada for feito para travar esta atividade, pelo menos em algumas regiões do país, a presença de certas espécies de aves poderá ser seriamente afetada. Mas então andam a caçar pássaros silvestres para os venderem na Internet, em feiras e em restaurantes? 
     Ainda com alguma incredulidade, entrei num dos mais conhecidos sites de leilões (OLX) e comecei a pesquisar. Os resultados deixaram-me de boca aberta: o site está pejado de pássaros e de outras aves silvestres, cuja captura é proibida. O mais comum, o simpático pisco-de-peito ruivo, está à venda pela módica quantia de 10€, mais ou menos o preço a que se compra uma rechonchuda galinha na feira de Barcelos. Mas se o caro leitor quiser adquirir o mais raro e esquivo pisco-de-peito azul já terá de desembolsar 50€. Só de piscos havia 19 anúncios, correspondentes a outros tantos vendedores. Chapins (frequentemente conhecidos por papa-abelhas na nossa terra) havia também perto de duas dezenas de vendedores, que ofereciam o chapim real, o chapim de cabeça azul e o chapim rabilongo. A escolher e a 10€ a unidade. Por este preço encontrei ainda as toutinegras, o papa-amoras, a felosa das figueiras, os tentilhões e os chamarizes (“cerejias” em Palme). Por 15€ é possível comprar verdelhões e chascos. Neste último caso ainda me ocorreu se o vendedor seria de Aldreu, mas não…(já agora cucos de Palme também não constavam da lista…). Num patamar acima (20€) deparei-me com as graciosas alvéolas brancas e cinzentas (mais conhecidas aqui por Palme por levandiscas) e os vistosos pintassilgos. A lista é quase infindável e engloba até pardais (a 15 Euritos cada) e aves de maior porte, como gaios, pegas, pica-paus, melros, corvos, etc., etc. 
     Além das aves, é possível comprar uma parafernália de armadilhas, pescoceiras, gaiolas e diversas bugigangas para capturar e alimentar as pobres aves. Tudo escarrapachado na Internet e à distância de um clique. Como é possível existir este comércio ilegal de aves em Portugal? E como é possível as autoridades aplicarem coimas por dá cá aquela palha aos restaurantes (por exemplo por utilizarem utensílios de madeira na cozinha) e nada fazerem contra as casas que servem petiscos à base de pássaros fritos? Os menos escrupulosos poderão argumentar: não comes frango assado? Sim, como. Não gostas de codornizes? Já comi e não são más. Pois os pássaros é a mesma coisa, mas em ponto pequeno! 
     Aqui discordo, não se trata de uma questão de escala, mas do facto destas aves terem um estatuto próprio de defesa. É por isso que a sua captura e comercialização são ilegais. E depois pergunto: há necessidade de comer estas minúsculas aves? Creio que não. Lembro-me da minha avó contar que, na sua juventude, quando uma sardinha era dividida por duas e três pessoas e se mourejava de manhã à noite (isso sim eram tempos duros!), alguns palmenses dedicavam-se à captura de pássaros para consumo próprio. A técnica consistia em cercar as medas de palha com redes durante a noite, para assim apanhar os pardais que ali pernoitavam. Mas isto foi em tempos de fome e de miséria extrema. Hoje comem-se pássaros não por necessidade, mas por caprichos da gula e por uma insaciável vontade de experimentar coisas novas. Por esta ordem de ideias, por que não ouriço-cacheiro de escabeche? Ou lombinhos de doninha assados no forno? Ou ainda coxinhas de toupeira de fricassé? E por que não uma caldeirada de salamandras e tritões? A imaginação é o limite. 
     Além do mais, estas aves desempenham um importante papel nos ecossistemas. Muitas das que se encontram à venda na Internet e nos pires de alguns restaurantes são insetívoras, alimentando-se de larvas, moscas, piolhos, formigas, etc., sendo auxiliares preciosos dos agricultores e dos jardineiros no combate de diversas pragas. Outras são granívoras, alimentam-se prioritariamente de sementes (verdelhões, pintarroxos, tentilhões, etc.), mas talvez com exceção do pardal, não causam estragos nas culturas. E há sempre uma altura, nomeadamente durante a criação, que se alimentam de insetos. Algumas como as felosas debicam a fruta, como dióspiros, figos  e morangos, mas sejamos francos, sobra sempre e deixa-se estragar tanta coisa que os prejuízos causados por estas pequenas aves são insignificantes. Portanto e a meu ver não há razões objetivas que sustentem esta prática de dizimar as aves para contentamento do estômago.
     Aqui por Palme não consta que haja comerciantes de aves silvestres com este nível de negócio, nem conheço restaurantes aqui pelas redondezas que tenham fritadas de pisco na sua ementa. Mas não falta por aí quem tenha destas aves engaioladas, nomeadamente melros, gaios, corvos, pegas e até aves de rapina, como gaviões. Esta é uma prática mais generalizada que resulta do fascínio que a beleza natural e o canto das aves sempre causaram. O que não quer dizer que ter uma levandisca ou um pisco encarcerado numa gaiola seja menos ilícito do que apresentá-los numa marinada de tomate, cebola e malagueta. Ambas as atividades são interditas. 
    Apesar disso, Palme é uma terra com uma razoável avifauna, tendo habitats apropriados para várias espécies: desde as áreas florestais mais densas, aos terrenos agrícolas abertos, incluindo as zonas húmidas do fundo da agra e as margens dos ribeiros. Como o post já vai longo, fica aqui a promessa de, em breve, regressar ao assunto das aves mais comuns em Palme. A seguir, para aguçar o apetite, deixo-vos algumas imagens sobre o tema que aqui trouxe. Qual é que a preferem: a dos pássaros estorricados ou as dos pássaros em liberdade? Eu já escolhi. Não é preciso revelar a minha opção, pois não?!


Piscos fritos (estorricados?) com batatas fritas


Pisco feliz da vida em Palme