quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

A noite da passagem de ano

Dentro de algumas horas entraremos em 2019. Na prateleira de cima do frigorífico, as garrafas de champagne estão já impacientes, à espera que as mãos agitem o gás carbónico e removam as rolhas para, puuum, darem as boas vindas ao novo ano numa ejaculação de espuma etílica. Em cima da mesa, o saco com as uvas desidratadas e desengrainhadas, estão ávidas de serem engolidas ao som das doze badaladas, para cumprirem desejos recônditos. No cabide do armário, jaz dependurada uma fatiota nova, comprada a crédito, de tecido que em breve vai ficar manchado de espuma de champagne, de cerveja e de secreções corporais diversas. Nas barracas e tendas espalhadas pelas cidades, dão-se as últimas afinadelas aos sistemas de som e de luzes, para que nada falte aos artistas (muitos de meia tigela) para brilharem no momento de subirem ao palco. Os fogueteiros dão os últimos retoques para que, no primeiro segundo, o novo ano seja recebido com estoiros que se desfazem no céu negro numa poalha de mil cores. Está tudo a postos e em contagem decrescente para uma das noites mais aguardadas do ano: a noite da passagem de ano! Para sermos mais corretos, quando em Portugal se festejar a entrada do novo ano, uma boa parte do mundo já se encontra em 2019. E a outra parte do mundo está em que ano? 

- Em 2018, responderá o leitor mais atento, a pensar por exemplo nas Américas, onde a mudança de ano só chega umas horas mais tarde. 

A resposta do caro leitor está meia-certa. Para não dizer errada. Em parte é verdade porque se convencionou, de acordo com o calendário gregoriano, que estamos no ano de 2018. A contagem deste calendário fez-se a partir do nascimento de Cristo que, tal como a data indica, terá ocorrido há 2018 anos. No entanto, como foi dito num post publicado neste blogue em dezembro de 2015, essa contagem de tempo está incorreta. Considera-se que o nascimento de Cristo terá ocorrido há mais tempo, e há diversas evidências históricas e científicas que comprovam que isso terá ocorrido 4 anos antes do dito “ano zero”. Portanto, oficialmente vamos entrar em 2019, mas na verdade esse ano já passou há algum tempo. 

Mas a questão feita mais acima “E a outra parte do mundo está em que ano?” era uma pergunta com rasteira. A resposta não era 2018 nem o facto de esta data estar errada. A resposta correta seria: “o mundo rege-se por vários calendários diferentes e, por isso, muitos países encontram-se em anos  diferentes”. Sim, agora a resposta está certa, 5 valores. Um dos aspetos mais curiosos neste nosso mundo globalizado e conectado, em que tudo é sabido, discutido e partilhado quase ao segundo, é o facto dos países usarem calendários completamente diferentes. E mais estranho ainda é quase não se falar do assunto. No mundo ocidental e na sua esfera tradicional de influência, o calendário gregoriano é o que se encontra em vigor. Mas há milhares de milhões de habitantes desta bolinha de sabão sólida, que é o planeta Terra, que estão noutras épocas. Se quisermos viajar ao passado ou ao futuro é muito simples, basta embarcar para um país com um calendário diferente do nosso. Há dezenas de calendários e muitos povos e comunidades encontram-se em épocas muito distintas. Vejamos alguns casos concretos.

Os judeus não têm por referência o nascimento de Cristo para a contagem do tempo, mas sim o momento descrito no livro “Os Genesis” em que Deus criou Adão e Eva, considerados os primeiros pais da humanidade. Segundo o judaísmo esse acontecimento teve lugar há 5778 anos. Os judeus estão por isso no ano 5778, ou seja, no século LVIII. Se quisermos ver como é o futuro longínquo, bastará pois dar-mos um salto a Israel…

Os muçulmanos tem como referência para a contagem do tempo a evasão de Maomet, o profeta e fundador do Islamismo. Esse acontecimento histórico ocorreu no século VI do calendário gregoriano, pelo que o mundo muçulmano se encontra no ano de 1441. Nessa data, mas no calendário gregoriano, os Portugueses estavam a iniciar os Descobrimentos Marítimos. Portanto, se quisermos recuar mais de cinco séculos, basta dar um salto à Arábia Saudita, por exemplo. Já agora, o calendário muçulmano é solar e lunar, pelo que a mudança de ano nunca ocorre sempre na mesma altura. A próxima passagem de ano será em 31 de agosto de 2019.

O calendário persa encontra-se ainda mais recuado no tempo. Os iranianos, que são na sua maioria Xiitas, encontram-se no ano de 1397 e a passagem de ano para 1398 acontecerá no próximo dia 21 de março (equinócio da primavera).

O novo ano novo chinês é talvez aquele que tem uma maior cobertura mediática, incluindo em Portugal, devido às importantes comunidades deste imenso país que estão espalhadas pelo mundo e à astrologia chinesa. O novo ano chinês celebrar-se-á no próximo dia 5 de fevereiro (astrologicamente será o ano do porco). Considerando que só a China tem cerca de 1,4 mil milhões de habitantes, uma parte significativa da população mundial festeja a mudança de ano numa altura diferente da nossa. Já agora os chineses entrarão no ano 4715, pelo que a China também constitui uma boa opção para se viajar para o futuro. O calendário chinês conta o tempo a partir do tempo em que o primeiro imperador chinês subiu ao trono, o que sucedeu no ano 2697 antes de Cristo.

Na Ásia, há também diversos países (Tailândia, Cambodja, Sri Lanka, Laos, etc.) que se regem pelo calendário budista. Neste caso, o ano mudará em meados de Janeiro para o ano 2563. Depois há milhões de habitantes que se regem pelo calendário hindu, que tem diversas variações de país para país...

Os poucos exemplos descritos anteriormente revelam o quão rico e diverso é o mundo em que vivemos e que a chegada de 2019 às 0.00 horas do próxima dia 1 de Janeiro é um acontecimento relativo. Muitos países e alguns milhares de milhões de pessoas não se regem por este calendário ocidental. Portanto, quando os jornalistas anunciam com pompa e circunstância que o mundo entrou em 2019, isso é uma flagrante mentira. Ou pelo menos revela uma grande falta de rigor. Mas para os foliões, estas curiosidades de calendário pouco interessam, pois o que importa é o forrobodó e a borga. Então, para os foliões mais rijos e endinheirados, fica aqui a dica: por que não fazer um périplo pelas diversas passagens para os diferentes anos, a começar na Ásia e a acabar na América? Só na China, os festejos do novo ano duram 15 dias, bem melhor do que em Portugal, onde só duram uma noite. Fica aqui desafio. As inscrições estão abertas, o pessoal que se comece a alistar…Um bom ano novo para todos, independentemente do ano em que se encontrem!



sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Combatentes da Primeira Guerra Mundial

No passado dia 11 de novembro comemorou-se o centésimo aniversário da assinatura do Armistício que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. Portugal à data do início da Guerra, em 1914, era um país pobre, rural, analfabeto e instável. A jovem República tinha ainda quatro anos de existência e estava mergulhada numa grande crise política, onde os governos se sucediam sem cumprir os respetivos mandatos. A participação de Portugal na Guerra em tais circunstâncias ficou a dever-se a um conjunto de motivos, nomeadamente: a necessidade de salvaguardar a integridade dos territórios ultramarinos, nomeadamente em África, que eram fortemente cobiçados pela Alemanha e pela própria Inglaterra; a necessidade de afirmar o jovem regime perante as nações europeias, nomeadamente face às monarquias espanhola e inglesa, que consideravam que Portugal tinha caído na completa anarquia. O país, que estava à beira do colapso, não estava minimamente preparado para participar na Guerra: nem do ponto de vista da capacidade bélica, nem da preparação das tropas, nem para fazer face ao esforço financeiro que a Guerra exigiria. Por isso, a Inglaterra recomendou durante muito tempo que Portugal se mantivesse afastado do conflito. Mas o país estava determinado em participar no conflito ao lado dos aliados e foi até formada uma aliança governamental entre os dois principais partidos políticos (a União Sagrada), que eram favoráveis à entrada de Portugal na Guerra. Com o desenrolar da Guerra, a Inglaterra, velha aliada de Portugal, garantiu que protegeria o país em caso de ataque alemão. E em fevereiro de 1916, depois de Portugal, a pedido da Inglaterra, ter confiscado 70 navios alemães e austríacos que estavam atracados nos nossos portos (44 dos quais foram cedidos à Inglaterra), a Alemanha rapidamente declarou guerra a Portugal. E assim, Portugal entrou formalmente na Primeira Grande Guerra a 9 de março de 1916.

Apesar de até então neutral, Portugal já se tinha envolvido em várias escaramuças com a Alemanha nas colónias africanas. O primeiro desses incidentes ocorreu em agosto de 1914 na fronteira norte de Moçambique, quando as tropas alemãs atacaram o posto fronteiriço de Maziúa e aniquilaram as forças portuguesas lá estacionadas. O incidente levou a que o Governo português mobilizasse muitos soldados para Angola e Moçambique, muito antes de Portugal entrar formalmente na Guerra. Os primeiros soldados chegariam a Angola em outubro de 1914 e a Moçambique um mês depois. Até ao final da Guerra foram enviados para estas duas ex-colónias cerca de 50000 homens. Muitos deles pereceram não tanto pelas balas do inimigo, mas sobretudo por causa das deficientes condições sanitárias e das doenças tropicais. Só em Moçambique estima-se que morreram mais de 2000 soldados enviados de Portugal, não contando com os “soldados indígenas” e com os carregadores africanos, dos quais não se conhece com rigor o número de baixas. 

Depois da declaração de Guerra da Alemanha a Portugal em março de 1916, Portugal enviou as primeiras tropas do Corpo Expedicionário Português (CEP) para o norte França em janeiro de 1917. Ali se juntariam às forças aliadas que combatiam os alemães. No total foram enviados mais de 55 mil homens para o norte de França. Na frente europeia, cerca de 6700 soldados foram feitos prisioneiros pelos alemães e 2160 morreram em combate. O dia mais trágico foi sem dúvida o 9 de abril de 1918 quando o CEP, que estava prestes a ser rendido por uma força inglesa, sofreu uma forte ofensiva alemã, que rompeu com as linhas de defesa portuguesas, causando cerca de 6500 prisioneiros e a morte a cerca de 400 militares. No cômputo final, contando com população civil, militares portugueses, tropas recrutadas nas ex-colónias e carregadores, Portugal teve cerca de 70000 baixas. Foi este o número apresentado pelo Governo português na Conferência de Paz.

Uma das brigadas do CEP que se destacou pela sua coragem e bravura no conflito foi a Brigada do Minho. Dela faziam parte soldados do concelho de Barcelos e também alguns de Palme, que foram defender a pátria para o norte de França, mas também para as ex-colónias. No total, Barcelos enviou para combater em França 548 homens, dos quais seis eram de Palme. Além destes, houve também um soldado de Palme que foi mobilizado para Moçambique. Do total destes sete combatentes, dois deles morreram em combate em La Lys e um foi vitimado por doença.

O soldado palmense mobilizado para Moçambique foi:
- António José de Sá. Nascido em 1895, embarcou para Moçambique a 30 de agosto de 1918 e regressou a 19 de agosto de 1919. Foi condecorado com a Medalha Comemorativa das Campanhas do Exército Português e com a Medalha Comemorativa Inter-Aliada da Vitória.

Os soldados de Palme que integraram o CEP destacado para o norte de França foram:
- Adelino Joaquim de Sá. Nascido em 1893, embarcou de Lisboa para França em abril de 1917. Foi um dos militares que tombaram na batalha de La Lys travada no dia 9 de abril de 1918.

- João Joaquim Faria de Sá. Nascido em 1895, embarcou de Lisboa para França em abril de 1917. Foi promovido a segundo cabo em novembro de 1917. Durante a batalha de La Lys foi ferido e morreu poucos dias depois a 17 de abril de 1918. Foi sepultado em França. Foi louvado pela coragem e determinação que demonstrou durante a batalha de La Lys para repelir o inimigo.

- José Maria Martins de Sá. Nascido em 1893, embarcou para França em abril de 1917. Foi ferido num combate em setembro de 1917, que o obrigou a estar sob cuidados médicos. Regressou a Portugal pouco antes da assinatura do Armistício, a 28 de outubro de 1918.

Soldado do CEP José Maria Martins Sá

Ficha do CEP do soldado José Maria Martins Sá

- Manuel de Faria. Nascido em 1892, embarcou para França em abril de 1917. A partir de julho desse ano, passou a exercer as funções de ferrador no exército. Faleceu no dia 27 de outubro de 1918 vitimado pela trágica bronco-pneumonia. O seu corpo encontra-se sepultado em França.

- Manuel José de Sá. Nascido em 1892, embarcou de Lisboa para França em abril de 1917. Desapareceu no combate de La Lys, tendo sido feito prisioneiro pelos alemães no campo de Munster II, na região de Rennbahn. Neste campo, os prisioneiros eram sujeitos a trabalhos a favor do esforço de guerra alemão (nas minas, fundições) e a um regime alimentar muito insuficiente. Depois do final da guerra, foi libertado e regressou a Portugal em janeiro de 1919.

-José Manuel de Sousa. Foi o palmense mais agraciado e distinguido durante a guerra. Nascido em 1860 em Palme, voluntariou-se para ser capelão do CEP em 1916, quando tinha já 56 anos de idade, o que lhe valeu a alcunha de “capelão velhinho”. À data era sacerdote em Gemeses, Esposende. Equiparado a alferes, o cónego Sousa embarcou para França em maio de 1917, tendo prestado serviço religioso no CEP a partir de então. Foi distinguido pelos relevantes serviços prestados aos feridos em combate, nomeadamente durante a batalha de La Lys. Não teve ensejo em acorrer à frente de combate para socorrer os feridos e prestar-lhe os primeiros socorros e até para sepultar os mortos. Foi um dos poucos capelães que ficou no norte de França após o desastre da batalha de La Lys e, já depois do fim da guerra, em 1919, foi nomeado para a Comissão Portuguesa de Sepulturas de Guerra, com o objetivo de identificar os soldados portugueses que estavam espalhados por muitos cemitérios e valas comuns em França. Um dos soldados exumados pelo cónego Sousa foi precisamente o soldado desconhecido que está no Mosteiro da Batalha. Regressou a Portugal em finais de 1921. Foi distinguido com várias medalhas e louvores, como a Cruz de Guerra de 2ª Classe e a Medalha Comemorativa da Campanha em França e os seus feitos tiveram eco na imprensa nacional, nomeadamente no Diário de Notícias de 18 de julho de 1918.

O alferes capelão do CEP José Manuel de Sousa


Ficha do alferes capelão do CEP José Manuel de Sousa


Portugal surgiu na Conferência de Paz de 1919 ao lado dos vencedores a reclamar o seu quinhão indemnizatório pela participação na Guerra. A vitória custou muito derramamento de sangue e sofrimento. Algum desse sangue foi de jovens de Palme que foram empurrados para uma guerra dura, distante, travada por motivos que desconheciam. Decorridos 100 anos sobre o fim deste pesadelo, fica aqui feita esta singela homenagem a todos os combatentes que foram empurrados para a Grande Guerra.




Bibliografia:
- Arquivo Militar do Exército.
- Neiva, P. (2016). Barcelos na 1ª Grande Guerra, honrando a memória dos seus combatentes. Câmara Municipal de Barcelos.
- Carvalho, M. (2015). A Guerra que Portugal quis esquecer. Porto Editora.
- Pestana, I. (2008).Das trincheiras, com saudade : a vida quotidiana dos militares portugueses durante a Primeira Guerra Mundial, Esfera dos Livros.

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

A hora de Palme

Há já algum tempo que o assunto se discutia, mas sem consequências de maior. Na Europa dizia-se que a população fora referendada e que, sim senhor, a larga maioria dos europeus era a favor do fim da mudança da hora. Em Portugal, as opiniões dividiam-se, mas o povo entrevistado na rua pelos repórteres televisivos, achava que a mudança de hora era uma trapalhada, que só servia para confundir as pessoas, que andavam durante semanas desorientadas. Tudo conversa fiada, porque fazer alguma coisa para mudar este estado de coisas, nem tanto como uma unha negra. Mas Palme chegou-se à frente e tratou do assunto como devia. 

Farta de acordar às tantas da madrugada ora para adiantar, ora para atrasar os ponteiros do relógio de seis em seis meses, a população tomou uma decisão radical: acabar com a mudança de hora! Correu um abaixo-assinado, foi convocada uma assembleia de freguesia extraordinária, e a proposta foi aprovada por unanimidade. Acabou-se a fantochada: quando chegasse o 28 de outubro, os ponteiros dos relógios de Palme seguiriam o seu ritmo normal e não seriam atrasados uma hora. Para trás anda o caranguejo! Não tinha jeito nenhum, perdia-se uma porradaria de tempo a mexer nos relógios, alguns são tão complicados de acertar que obrigavam à consulta dos manuais de fabrico, rompiam-se os mecanismos e as engrenagens, gastavam-se as baterias desnecessariamente e tudo para quê? Com a hora de inverno, as tardes não rendem nada, quando se acaba de almoçar é noite cerrada. Não, palavra de honra, a hora estava bem assim. A decisão, inusitada, rapidamente se espalhou e foi alvo de chacota nas freguesias vizinhas, o povo de Palme não andava a regular bem da cachimónia, olha agora ficarem com um horário diferente do resto. Foi logo colado o epíteto de “galegos” aos habitantes de Palme, pois a freguesia ficaria com o mesmo horário de Espanha. Mas ninguém levou a sério a decisão, quando chegasse o momento, que remédio senão os de Palme acertarem o relógio pela hora legal estipulada pelo Observatório Astronómico de Lisboa. Até que o último sábado de outubro chegou e, como sempre, surgiram os avisos na comunicação social a relembrar que se entraria na hora de inverno e, como tal, que os ponteiros teriam que andar para trás 60 minutos. Às duas da manhã, passava a ser uma da matina outra vez. Bom tanto para quem anda na farra pela madrugada fora, que tinha mais uma hora de borga, como para aqueles que gostam de estar no quentinho nos lençóis, que podiam ficar mais tempo no choco. Mas estas razões pouco importaram aos de Palme e à hora aprazada, nenhum relógio, fosse ele de cuco, de pendulo, de corda, cebola de bolso, ou roskopf de pulso foi mudado para a malograda hora de inverno. 

No dia seguinte, quando em Fragoso, o sino rachado badalava as sete horas da manhã, os cafés de Palme abarrotavam já de gente a tomar o café com a torrada com manteiga. 
- Aqui a vida começa cedo! Comentavam os forasteiros que passavam e viam aquela animação toda logo pela alvorada. Mas o pior veio depois.

Às dez da manhã, como sempre, o padre Viana apeou-se da sua viatura para celebrar a missa dominical, mas bateu com o nariz da porta. A igreja estava fechada e o adro da igreja vazio. Seguramente algo de extraordinariamente grave teria acontecido na freguesia, mas o quê?
- O senhor padre Viana vem uma hora atrasado! Os paroquianos estiveram aqui à sua espera, mas foram-se embora! - disse-lhe a Natividade que saía do cemitério de compor o jazigo do falecido.
- Ora essa! Então, mas eu avisei que a missa seria às 10H pela nova hora…
- Mas já são 11H senhor padre, ora espreite para a torre do relógio!...
E o padre, confuso, foi-se embora, a supor que realmente fora erro seu, e que talvez tivesse sido traído pelo sono na véspera, e que se enganara a mexer no relógio.

Na segunda-feira, as confusões agravaram-se. Os trabalhadores de Palme chegaram mais cedo que os outros uma hora. E isso não passava despercebido.
- Sim senhor, isto é que é dedicação, com este frio e vocês já aqui! Comentavam os encarregados ao verem os de Palme à espera que as portas do estaleiro ou das fábricas abrissem para dar o primeiro dia da semana. O pior era ao final da tarde:
- Então, já ides? Ainda não está na hora!
- Qual não está. São seis da tarde e se você estivesse aqui a horas, tínhamos dado as oito horas regulamentares. Se quiser que fique até às sete, tem que pagar uma hora extra. A dobrar.

Nas carreiras, os motoristas da Transdev estranhavam ao olhar para as paragens desertas de passageiros. Nem viva-alma entrava, nem saía em Palme. Para os das carreiras, o pessoal de Palme estava sob protesto, talvez a reclamar uma baixa de preço nos bilhetes. Por isso, não andavam mais de transportes públicos. Mas para os de Palme, a Transdev tinha mudado os horários sem dar cavaco a ninguém e à hora a que deviam passar para levar o pessoal, andavam por cascos de rolha. Portanto, ala nas próprias viaturas.

Na festa do padroeiro da freguesia, quando a fanfarra chegou, já a procissão estava a recolher à igreja. Só por desfeita.
- Isto são horas?! Perguntou o Ramiro, o mordomo da festa, a espumar de raiva.
- Então, mas o combinado não era estarmos aqui às 14H? tartamudeou o chefe da banda.
- E então, já passa das 15H! Pode voltar para o sítio de onde veio, que não lhe vamos pagar…

Na mudança de ano o desacerto foi ainda maior. Nas outras terras ainda se colocavam as garrafas de espumante no congelador, quando em Palme os foguetes já rebentavam no ar como bombas de dinamite, a dar as boas vindas a 2019. Nas freguesias vizinhas corria como dado adquirido que a população tinha enlouquecido por completo, que fora afetada por uma psicose coletiva. As notícias sobre Palme na comunicação social eram em catadupa, os noticiários faziam diretos, e os genealogistas começaram a esmiuçar as gerações passadas, para decifrar a provável causa do desvario coletivo. Constou-se até que o desatino poderia estar na consanguinidade das gentes da terra, ou seja, do facto da maior parte das pessoas serem parentes umas das outras, como o comprova o facto de quase todos terem o mesmo apelido (Sá). Como é sabido, as avarias causadas pela consanguinidade são frequentes na realeza, onde primos direitos, sobrinhos com tios, noras com sogros, etc., se prestam a fornicações danadas e a casamentos de conveniência para manter o sangue azul na família. Mas será que esta era a origem do problema em Palme?

Segue-se que o cerco à freguesia começou a apertar. O governo farto da brincadeira, ameaçou: ou a freguesia adotava a hora legal de Portugal Continental, ou então haveria represálias - acabavam-se as transferências do Orçamento de Estado. A Câmara de Barcelos, pressionada por Lisboa, olhava com preocupação para esta ovelha tresmalhada e ameaçava com cortes no financiamento municipal e até com a extinção da freguesia. Olha lá que os palmenses se preocupassem: quanto mais as autoridades pressionavam, mais a freguesia teimava em manter a hora como estava. O assunto perdera toda a significação legal e passara a ser um ponto de honra, um finca-pé de exaltação do brio e do orgulho local. E que fechassem à vontade a torneira do financiamento, pois a freguesia remediava bem sem as esmolas de Lisboa e de Barcelos. E, perante a teimosia, surgiram ameaças de ocupação militar e restabelecimento da ordem pela força. Verdade ou mentira, a notícia circulou assim.

Como é bom de ver, a corda estava demasiado esticada e acabou por rebentar para o lado mais frágil. Agora a forma como se rompeu é que foi inesperada. Não foi preciso vir a tropa, nem a polícia de intervenção. Bastou um coração destroçado. Foi assim: a Matilde, o ai-jesus da freguesia, estava de casamento marcado com um rapaz de fora da terra. O nó foi agendado para as 16H de uma cálida tarde de março. A rapariga, que era toda despachada, chegou à igreja num grande aparato um pouco antes da hora prevista. Noivo de grilo! Os minutos passaram-se e não havia forma do Bernardo aparecer. Entretanto, a rapariga e a sua família desesperavam. Na torre da igreja bateram as 16:30H. Nada. Tudo em ânsias à espera. Em surdina, cochichava-se que o rapaz se arrependera, que afinal ele ainda continuava a gostar da outra. A Matilde de coração destroçado e a chorar como uma Madalena, enfia-se no carro e parte desenfreadamente. Os convidados, condoídos e solidários com o gesto da noiva, abandonaram o recinto também. E é quando o padre já vai a sair também que a comitiva do Bernardo, guiada pela hora da terra do rapaz, chega ao adro da igreja de Palme. Mas a noiva e a sua família já lá não estavam. E foi então que se chegou à conclusão que o casamento não se realizou por causa do desacerto da hora de Palme. É que nem aos próprios noivos ocorrera! O casamento acabou por se fazer daí a  semanas, mas a rapariga, perdida de amargura, esteve para se atirar nesse final de tarde às correntes lamacentas do Lima. Para evitar alguma desgraça futura, e porque com a felicidade das pessoas não se brinca, a população lá concedeu em acabar de vez com a comédia da hora. E assim, no último sábado de março, bastou não adiantar os relógios 60 minutos para Palme voltar a entrar na hora oficial de Portugal. Só a Angélia Sá, já velha e amalucada, é que depois de ouvir a informação no rádio, adiantou o relógio para a hora de verão. E no dia seguinte foi a única pessoa a chegar à missa com uma hora de antecedência...



domingo, 30 de setembro de 2018

É proibido cuspir


De acordo com o dicionário da Porto Editora, cuspir consiste no ato de “expelir cuspo” ou seja do líquido segregado pelas glândulas salivares. A mesma fonte explica que escarrar é o ato de cuspir escarros, de expetorar. E também diz que o escarro é uma “matéria viscosa segregada pelas mucosas (em especial, das vias respiratórias) e expelida pela boca”. Ambos os atos, cuspir e escarrar, são usados como sinónimos, pois significam expulsar, por via oral, líquidos e matérias viscosas, mais ou menos pegajosas, de coloração variada, que vai do branco ao verde, passando pelo amarelo e vermelho quando contém vestígios de sangue.

Cuspir e escarrar é algo que está muito enraizado na cultura portuguesa. O ato em si reveste-se de todo um cerimonial. Primeiro é preciso puxar ruidosamente o escarro das profundezas abissais das ramificações pulmonares. Dependendo do nível de entupimento das vias respiratórias e da contração dada, poderá ser necessário mais de que um arranco cavernoso para fazer subir os fluidos ao nível bocal. Uma vez na boca, a próxima etapa consiste em moldar e enrolar convenientemente a viscosa em forma de projétil, para que saia tudo de uma só vez. O último passo é o da expulsão da dita cuja, que é arremessada com um som característico (thsssppp) a uma velocidade variável que pode atingir os 20 km/h. A escarradela tem duas variantes. A forma mais pura e tradicional é a de cravar diretamente o escarro no chão ou numa parede lateral. Quem se aventurar pelas ruas da cidade de Barcelos num dia de feira, sobretudo durante o inverno, quando os achaques das vias respiratórias são mais frequentes, depara-se com as ruas salpicadas de grossos e coloridos escarros, que obrigam a fazer autênticas gincanas para os não pisar. Nessas alturas, tenho sinceramente pena das pessoas marrecas, que andam com os olhos espetados no chão e são obrigadas a apreciar este espetáculo degradante. A forma mais civilizada e fina de escarrar é praticada por aqueles que trazem na algibeira um lenço da mão. Nestes casos há um segundo ritual que consiste em fazer um compasso de espera com o escarro na boca enquanto se vai ao fundo do bolso das calças pescar o lenço, o qual se desdobra pausadamente. Com o lenço aberto e amarrado com as duas mãos, o escarrador profissional crava a bisca no centro geométrico do lenço, fita-a durante uns instantes, dobra o lenço e deposita-o cuidadosamente no bolso, para não amachucar o escarro. Como todos se recordarão, um dos melhores mestres desta prática foi o padre Afonso, que cometeu a proeza de nunca ter falhado o alvo (o lenço da mão), para grande alívio dos paroquianos que tinham lugar reservado mesmo por baixo do púlpito. O ato de cuspir e de escarrar é tão generalizado em Portugal que poderia ser convertido em desporto nacional ou até em modalidade olímpica. Há competições para ver quem escarra mais longe, para ver quem escarra mais alto, quem escarra mais vezes durante um determinado período de tempo, quem consegue acertar num determinado alvo com a bisca, etc. Em Palme também temos ótimos praticantes desta modalidade, que seriam sempre sérios candidatos a um lugar no pódio em qualquer prova nacional ou internacional.

Mesmo em clássicos da literatura portuguesa, o escarro está muito presente. A obra de Eça de Queirós é fértil em escarros. Em Os Maias, por exemplo, encontramos esta passagem:
“Como o Sr. Dâmaso Salcede recusava retratar-se e rejeitava também uma reparação pelas armas, Carlos da Maia prevenia-o de que em qualquer parte que o encontrasse, daí por diante, fosse numa rua, fosse num teatro, lhe escarraria na face…
- Escarra-me! – berrou o outro lívido, recuando, como se o escarro viesse já no ar.”

É curioso que a forma como o Dâmaso recuou, como se o escarro viesse já no ar, faz lembrar o episódio recente entre o ex-presidente do Sporting, Bruno de Carvalho, e o seu homólogo do Arouca, que se queixa de ter sido escarrado pelo primeiro. As imagens não são claras, terão sido apenas vapores do sofisticado cigarro eletrónico como alega o presidente leonino? Ou terá sido mesmo um fluido viscoso das entranhas do Bruno como alega o presidente arouquense? O que é certo é que tal como Dâmaso, o presidente do Arouca recuou e, logo de seguida, se encristou contra o ex-líder leonino. Um mimo!

Em Portugal, cuspir em alguém, ao abrigo dos artigos 181º e 182º do Código Penal, é considerado crime de injúria. Em diversas cidades por esse mundo fora cuspir num espaço público é punido com coimas. A cuspidela sai particularmente cara em Singapura, com a multa a atingir os 892€. Se o transgressor reincidir, a multa pode chegar aos 4500€. Também em Portugal diversos municípios regulamentaram no sentido de punir o ato de cuspir nos espaços públicos. Por exemplo, em Matosinhos, a multa começa nos 45€ mas pode chegar aos 4500€. Em Oliveira do Bairro, a multa está tabelada em 250€. Cuspir está, portanto, pela hora da morte! Mais vale andar com o escarro o dia inteiro na boca e chapá-lo na sanita quando chegar a casa do que arriscar uma multa destas!

Este historinha vem a propósito de um sinal de proibição de cuspir que está afixado na lota de Esposende. A lota é um local propício ao escarro, devido ao intenso cheiro a peixe e ao triste espetáculo que entra pelos olhos dentro de peixes com as vísceras a irromperem pelas barrigas anavalhadas e de congros, agonizantes, que saltam para fora das caixas e ameaçam trepar pelas pernas acima das senhoras. O que vale é que na lota é tudo fresquinho e não há odores fétidos, a peixe em putrefação, como acontece no interior de algumas carrinhas de venda ambulante. Na referida lota, há mais três sinais de proibição, que toda a gente conhece. Num deles, há um traço vermelho sobre um cigarro. Como facilmente o leitor imagina, é proibido fumar o que é compreensível por se tratar de um espaço fechado. Noutro, há um traço vermelho sobre um copo e talheres cruzados. Como também se percebe, é interdito levar farnel para o interior da lota, assim como o garrafão de tintol. A desculpa de entrar com o garrafão para pôr o peixe em vinha de alhos já foi tentada, mas não colou. Num outro, há um traço vermelho sobre um canídeo. Como todos entenderão, este sinal proíbe a entrada de animais no recinto. Embora o deputado do PAN possa achar que a lota não está a respeitar os direitos dos animais, percebe-se a interdição pelo risco dos cães poderem abocanhar um robalo ou de mandarem uma dentada numa chaputa. Por fim, o quarto sinal mostra-nos um traço vermelho sobre um fundo branco! E aqui fica a dúvida, é proibido o quê? Entrar liso (teso) no recinto? Podia ser mas não é! A legenda esclarece: é proibido cuspir! Então, o sinal de proibido cuspir é assim? Quererá o fundo branco mostrar que o chão deve estar imaculado de escarradelas? Uma busca na Internet revela que há diversos sinais mais esclarecedores do que este para proibir a tradicional cuspidela. Por isso, parece que o autor deste painel cuspiu na própria obra, ou melhor, borrou a pintura por completo…


Sinalética de proibições na lota de Esposende

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

A festa da Senhora dos Remédios


No passado dia 19 de agosto tivemos em Palme a habitual festa em honra da Sr.ª dos Remédios. Estas festividades são tradicionalmente as maiores da freguesia. Porém há largos anos que a festa se comemora fora do dia. Antigamente a festa realizava-se no princípio de setembro, tal como ainda hoje continua a acontecer em Lamego ou em Arco de Baúlhe, dois dos locais onde se fazem as maiores festividades do país em honra da Sr.ª dos Remédios. Mas como em princípios de setembro os emigrantes já cá não estavam, a freguesia decidiu antecipar a festa para o terceiro domingo de agosto. Imaginem o que seria antecipar o S. João para o 13 de maio…foi mais ou menos isto que a freguesia inventou há umas décadas atrás. Contudo, este problema de comemorar festas fora do dia não é exclusivo de Palme, veja-se o que acontece em Vila Chã com o S. Lourenço!

Para além deste problema com a data que já vem do passado, a festa deste ano ficou marcada por diversas outras vicissitudes. Desde logo, a festa esteve em risco de não se realizar pelo facto da comissão nomeada, ou melhor, da maior parte dos seus membros, se ter descartado das suas responsabilidades. O problema de se arranjar comissões que preparem a festa a tempo e horas e de uma forma séria e competente não é novo nem é exclusivo de Palme. O “Barcelos Popular” noticiava há uns tempos que várias festas em diversas freguesias do concelho não se iriam realizar por as comissões de festas não terem servido. E nem é preciso ir mais longe: veja-se o caso da festa de Santo António que não se realizou este ano em Palme. Mas o ressuscitamento da festa de Santo António em 2014 teve motivações políticas e a política em Palme anda agora pelas ruas da amargura e a festa lá sofreu novo interregno. Falta saber se vai ser por mais 30 anos como aconteceu aquando da última interrupção…Em relação à festa da Sr.ª dos Remédios, este problema já se verificara em 2016, quando a comissão de festas começou a preparar a festa no mês de maio. Nessa altura, o principal problema foram as contas da festa do ano anterior, nomeadamente as suspeitas de que teria havido desvios de dinheiro. Houve na altura grande falatório, altercações e roupa suja lavada em público e, obviamente, as pessoas ficaram de pé-atrás em abrir os cordões à bolsa para futuras festas. Embora tardiamente, a comissão desse ano lá se formou e preparou a festa. 

Este ano o problema residiu no facto da maior parte dos elementos se estarem a marimbar para a festa. E porquê? Em primeiro organizar uma festa é uma carga de trabalhos, de responsabilidades e de despesas. As pessoas têm que abdicar de muito do seu tempo, nomeadamente dos fins-de-semana para peditórios, para contactos, reuniões, deslocações, para estarem no bar, para organizarem eventos, etc. Evidentemente muitos não estão para isso e não querem sair da sua zona de conforto. Em segundo lugar, houve muita gente válida que emigrou ou que trabalha fora e só está cá muito pontualmente. Isto é particularmente válido para os homens pois as comissões em Palme continuam a ser exclusivamente masculinas. Este facto também não se entende. As mulheres não serão capazes de assumir a responsabilidade e não terão competência para organizar uma festa? Na verdade, isto parece ser mais uma daquelas tradições conservadoras de Palme que só desprestigia e secundariza o papel das mulheres. Como antigamente, quando na igreja os homens ficavam à frente e as mulheres atrás; ou como ainda hoje nas procissões, em que os homens vão perfilados à frente e as mulheres vão amontoadas num magote atrás de todo, numa espécie de carro-vassoura da procissão. Em terceiro lugar, a fé já não é o que era. A pouca crença somada ao corre-corre e à trabalheira que dá preparar uma festa durante um ano inteiro obviamente que demove os menos devotos. Em quarto lugar, a crítica e a maledicência que é tão cáustica em Palme afasta muitos das comissões. Há sempre alguém que vem dizer mal, que a festa não prestou para nada, que o fogo foi rasteiro, que as flores dos andores foram colhidas no fundo da agra, que alguém da comissão se governou, etc., etc. Em Palme, as pessoas tanto são criticadas por fazerem, como por não fazerem. Há por aí pessoas que já estiveram em comissões de festas e que juram a pés juntos que nunca mais servem por causa deste espírito crítico e zombeteiro da freguesia. O que é uma pena e uma perda.

As dificuldades de formar uma comissão resultam em grande medida da ação combinada destes quatro fatores. A comissão deste ano, constituída apenas por quatro elementos, começou a trabalhar em cima da hora a pouco mais de um mês da festa. É preciso ter coragem! Com tão pouco tempo para arrecadar receita, o orçamento da festa teria que emagrecer e muito. Cortaram-se algumas mordomias, como a GNR a cavalo que cobra uma fortuna, bem como o forrobodó na sexta à noite. Na prática manteve-se o religioso e sacrificou-se o profano. Agora o que ninguém estava a contar foi com o decreto de Lisboa a proibir o lançamento de fogo-de-artifício por causa do risco extremo de incêndio nesses dias. O resultado foi então o de uma festa muda, sem espetáculo pirotécnico no sábado à noite e sem fogo a marcar o compasso e a chegada da procissão. Um silêncio sepulcral! Está claro que a culpa não foi da comissão, as responsabilidades terão que ser assacadas a quem regula a máquina do tempo, que podia ter mandado condições atmosféricas menos ásperas; ou então aos governantes, que depois das tragédias do ano passado, estão a seguir à risca a máxima “casa roubada, trancas à porta”. Mas percebe-se a decisão e o fogo é realmente perigoso, principalmente quando era lançado com cana. Em festas passadas, houve pessoas atingidas por canas na procissão (talvez não andassem na graça do Senhor); ocorreram incêndios na encosta da capela na sequência dos foguetes lançados; num ano, a estrutura que segurava uma girândola virou-se e os foguetes rebentaram todos no fundo de uma leira, se tivesse virado ao contrário tinham rebentado no meio das pessoas que iam na procissão (aqui pode-se dizer que foi milagre). Mas ninguém se importa e já ninguém se lembra disso! O que o pessoal gosta é de ver os foguetes a traquejar com estrondo e os morteiros a rebentar em penachos de luz. O resto é história! Por isso, no dia da festa, a opinião dominante foi a de que a decisão de proibir o foguetório foi leviana e apressada. Da boca de uma participante assídua das procissões ouvi esta frase curiosa que resume tudo: “isto nem parecia a procissão da festa, parecia um velório”!!

Imagem da Senhora dos Remédios de Palme durante a procissão


terça-feira, 31 de julho de 2018

Lixo, contentores e ecopontos

As queixas sobre a recolha do lixo e sobre a localização dos contentores em Palme não são novas. Neste mês de Julho, a Junta divulgou uma mensagem a apelar “ao bom senso na questão dos lixos”, depois das pessoas transformarem o espaço em redor do contentor localizado na Cruz numa espécie de mini lixeira a céu aberto. Como a imagem documenta, o contentor foi atestado com lixo até às goelas, com os sacos amontoados uns em cima dos outros numa espécie de pirâmide de entulho. Por falta de escada no local para as pessoas continuarem a colocar mais sacos em cima dos outros, a solução encontrada foi a de esparramar o lixo das mais diversas origens pelo chão, em torno do contentor. Ora como é fácil de imaginar, nestes sacos há restos de comida que atraem o faro apurado de muitos canídeos e de felinos que andam lazarados com a fome. Os sacos são, por conseguinte, esgaçados pela bicharada atrás daquele chispe mal descarnado ou dos restos de atum que ficaram agarrados às paredes da lata. E o lixo revolvido pelos animais e depois empurrado pelo vento espalha-se por uma área considerável, dando um aspeto degradante e sujo. Na dita mensagem, a Junta aproveitou para dar uma alfinetada dizendo que “a freguesia é o espelho dos seus habitantes” e, numa espécie de manual de boas práticas para quando um contentor estiver cheio, aconselhou as pessoas a: i) deslocarem-se com o lixo a um outro contentor que ainda não esteja cheio; ou ii) a guardarem o lixo em casa até que o lixo que está no contentor seja recolhido pelos serviços municipais. Estes dois conselhos fazem sentido, mas faltou dizer que a separação e reciclagem dos resíduos é porventura a melhor solução para resolver este problema. O mais extraordinário é que praticamente em frente ao contentor em causa existe um ecoponto e, como se pode ver pela imagem, muito do lixo espalhado pelo chão podia estar no ecoponto. O problema dos resíduos sólidos urbanos em Palme resulta, por um lado, do modelo de consumismo da sociedade atual, onde há uma grande quantidade de desperdícios; e por outro da comodidade, da falta de civismo e de bom senso por parte de algumas pessoas.

O melhor exemplo a respeito da quantidade excessiva de resíduos da nossa sociedade atual é ir às compras. Um carrinho de compras de supermercado é uma montanha gigantesca de embalagens, embrulhos, invólucros, sacos, saquetas e de caixas à base essencialmente de plástico e de cartão, mas também de papel de alumínio, de metal, de vidro, de espumas, para além de outros materiais. Uma percentagem significativa do dinheiro que gastamos num supermercado é em lixo (isto já para não falar que a qualidade de alguns produtos é pior que lixo). A explicação é simples: a produção de plástico é barata. Das embalagens usadas, calcula-se que 95% delas se percam após a primeira utilização, o que gera uma grande quantidade de resíduos para o ambiente. Em Portugal e, de acordo com a Pordata, cada pessoa produziu 461 kg de resíduos sólidos urbanos no ano de 2016. Ora se considerarmos que em Palme residem habitualmente cerca de 800 pessoas, verifica-se que a freguesia produzirá à volta de 360 000 kg de resíduos por ano. Visto desta forma, este valor é significativo.

Porém o problema em Palme é agravado por algumas especificidades locais e é aqui que entra o comodismo e a falta de civismo. Um dos problemas mais graves é o das pessoas atirarem tudo para dentro dos contentores: a relva que se aparou no jardim, as pontas das árvores e das sebes que se podaram, sacos cheios de ervas daninhas (junça, trevo…) que estão a infestar o quintal, sobras de trabalhos agrícolas, sacos de batatas em decomposição, tranças de cebolas chochas, rasas de feijão picado do bicho, cadáveres de coelhos atacados pela mixomatose, cabeças, patas, tripas e penas de frangos de aviário, entranhas de animais diversos, bacias de unto e de carne gorda de porco pelo tempo das matanças. Despojos vegetais e animais, mais ou menos às claras e à luz do dia, são lançados sem despudor para o interior dos contentores. Ora isto para além de atravancar os contentores com resíduos que não são sólidos urbanos, cria problemas de saúde pública, como é o caso de atirar animais mortos para os contentores. Será que dá assim tanto trabalho abrir um buraco no quintal para enterrar uma galinha, um coelho ou as vísceras de uma ovelha? Por outro lado, os restos vegetais podem ser deixados a apodrecer num canto do quintal e até dão bons fertilizantes biológicos e podem ser misturados com restos domésticos (compostagem). É evidente que isto exige tempo e trabalho, mas traz benefícios para todos e para o ambiente. Por outro lado, a não separação dos resíduos é incompreensível e só pode ser entendida por manifesto comodismo. Uma garrafa de vidro num ecoponto é 100% reciclável; uma garrafa de vidro no solo ou num aterro nunca mais se decompõe; a reciclagem do papel e do cartão (que é biodegradável) evita o abate de árvores; a reciclagem do plástico permite reduzir a sua deposição no meio natural, onde está a contaminar e a destruir peixes, aves e mamíferos, para além do plástico ser produzido a partir do petróleo (recurso não renovável). A quantidade de plásticos depositada nos oceanos não para de aumentar e 80% do lixo oceânico é plástico. A este ritmo estima-se que, em 2050, haja mais plásticos do que peixes nos oceanos do planeta. 

De regresso à imagem do contentor de Palme, nota-se que uma percentagem elevada dos resíduos dispersos pelo chão podia ter sido colocada no ecoponto, que está mesmo em frente. Mas por comodismo e, talvez, por falta de sensibilização, as pessoas optaram por colocar o lixo em sacos indiferenciados e enviar tudo para o aterro. É curioso que ainda há uns anos a freguesia alvoroçou-se com a ameaça de receber o aterro sanitário do Vale do Lima e do Baixo Cávado e de, assim, ser o destino do lixo de vários concelhos durante 10 anos. Mas quando se trata de enviarmos o nosso lixo para outras freguesias, já ninguém se preocupa ou pensa nisso. Com o mal dos outros, podemos nós bem!

A melhoria da qualidade ambiental e urbana não depende só dos outros e não é um problema que não nos diga respeito. Depende das atitudes e dos comportamentos de todos, a começar por cada um de nós nas nossas casas. Reduzir, reutilizar e reciclar os resíduos e utilizar os contentores indiferenciados de forma parcimoniosa e racional é a melhor forma de garantir um futuro melhor para todos nós.

Imagem de contentor de lixo na Cruz: tantos resíduos que deviam estar no ecoponto.

sábado, 30 de junho de 2018

A arte rural dos espantalhos

Atualmente fala-se muito de arte urbana. Umas pinturas feitas com latas de spray numa fachada de um edifício, a retratar políticos a esmagar com a bota a cabeça de um imigrante; um grupo de amigos de um bairro que têm jeito para improvisar rimas e formam uma banda de hip hop, com letras de revolta contra o sistema instalado; um comboio grafitado clandestinamente e pela calada da noite numa estação sombria com palavras de ordem; uma escultura construída com quinquilharias apanhadas num caixote do lixo. Tudo isto é visto como manifestações de arte urbana, embora de forma preconceituosa por alguns, porque está associada a marginais, a guetos, a gente desintegrada. Mas esta arte urbana tem impacto, porque é nas cidades que as pessoas vivem e que as coisas acontecem. E ninguém fica indiferente (pela positiva ou pela negativa) a uma fachada pintada de fresco ou a andar num comboio com as janelas grafitadas, porque não se vê a ponta de um corno para fora.

Nos meios rurais, a arte manifesta-se de forma diferente e tem subjacente a utilidade. Como é o caso do artesanato. As peças de artesanato remontam a tradições e a práticas ancestrais. Veja-se por exemplo, em Palme, a produção de gamelas em madeira, que serviam (e ainda servem) para amassar o pão e guardar alimentos, o fabrico de cestos para carregar diversos materiais; ou em Aldreu o fabrico de remos, que depois eram enviados para a beira-mar. Mas para além do artesanato tradicional, que corre risco de se extinguir à medida que os artesãos desaparecem (veja-se os casos recentes em Palme do desaparecimento dos senhores Larú e Arlindo da Sula, este último não deixando seguidores no ofício da cestaria), há por aí outros artistas anónimos que podem fazer carreira na dita arte rural. Por esta altura do ano, quando as cerejeiras ficam a vergar com cachos sumarentos de cerejas pretas e os lavradores lançam o milho à terra, surgem por aí uns senhores com esqueleto de madeira e corpanzil de colmo, vestidos à trouxe-mouxe, que são autênticas obras de arte. Tal como as pessoas de carne e osso, há-os de vários feitios, uns mais aprumados e asseados, outros parecem pedintes em terra de forretas, outros são aterradores, com as entranhas a irromperem pela roupa descosida. Os espantalhos são umas das manifestações mais curiosas da arte rural. E também têm a sua utilidade. Em primeiro lugar, porque mostram a preocupação e o zelo das pessoas em protegerem as suas culturas da passarada que anda lazarada com a fome. Em segundo, porque a maior ou menor dedicação com que os bonecos são feitos refletem a fibra do artista. Alguns pregam dois paus cruzados, dependuram-lhe uns trapos e assim fica o espantalho ao deus-dará. Os artistas que fazem estas obras são amadores e não se lhes augura um futuro por aí além na profissão. Outros dedicam horas e horas ao espantalho, capricham nos pormenores, agasalham-no convenientemente, estudam o local onde o vão colocar e visitam-no várias vezes, para o compor das inclemências do tempo ou da inveja dos que passam. Estes sim, são artistas de mão cheia e deviam figurar nos rankings municipais dos artistas rurais.

Num destes dias, deparei-me com uma destas obras de arte em Palme. O senhor cara de pau estava espetado num campo de milho que, pelas clareiras carecas de plantas, se adivinha ter sido desbastado por bando de gaios ou por comandita de pardais. O cavalheiro é alto e entroncado para se ver à distância e meter medo aos assaltantes de bico. Está empalado em madeira de carvalho, que é mais resistente ao bicho, e está virado para norte, talvez para não se queimar muito com o sol. O artesão vestiu-o com uns jeans Pierre Cardin, estilo chinos, que são mais desportivos. E como está muito na moda em Milão, os jeans estão vestidos ao contrário, o que mostra que o artesão percebe da poda. Veste ainda uma t-shirt Versace rosa sobre uma sweat XL da Armani, de cor cinza, o que lhe confere um estilo jovem, descontraído e casual. Na cabeça enverga um boné Lacoste e uma echarpe vermelha sem marca (presume-se que comprada nos ciganos da feira de Barcelos), que destoa claramente do resto. Num dos braços segura uma mala encarnada Louis Vuitton e este adereço está a gerar grande discórdia, porque dá um ar efeminado ao espantalho, que claramente se veste à homem. Já agora permitam-me que não se percebe a falta de “espantalhas”, de mini-saia justa e bem acima do joelho, de leggings coladas à pernaça de pau e de top dois palmos acima do umbigo. Talvez estas criaturas não causassem receio à bicharada, bem pelo contrário, eram capazes de atrair a passarada masculina e desassossegar os espantalhos machos, mas fica a dica para os artistas. Regressando ao nosso amigo, ela usa rastas amareladas e compridas até aos ombros que devem ter dado uma grande trabalheira ao artista, embora haja quem diga que o cabelo foi arranjado num dos salões de estética da freguesia. Desde que esta figura tão bizarra e vistosa foi espetada na leira, a passarada bateu as asas para outros terrenos, ou passa a grande altitude para não ter que encarar a criatura.

A eficácia dos espantalhos para afugentar a passarada é discutível e merece estudos mais aprofundados. No início, há o efeito surpresa, o inesperado, mas os animais são finórios. Apercebem-se rapidamente que aquilo não se mexe, que não representa perigo e que os braços abertos até são um bom poleiro para estarem a catar o piolho. Esta história fez-me lembrar o Romance da Raposa do Aquilino Ribeiro, que é um livro que devia ser de leitura obrigatória. É uma fábula sobre uma raposa que usa toda a sua manha e astúcia para sobreviver, o que obviamente também se aplica a muita gente. A passagem do livro é a seguinte:

“Às vezes, no meio do campo, um homem de palha, vestido de farrapos, pelo chapéu deixando passar o céu estrelado, estendia os braços a querer persuadir a gente que era sentinela de truz. Plantara-o ali o cultivador contra a raposa, os gaios e os pardais. E a comadre (a raposa), que era cortês e bem-educada, não entrava nem saía do campo que não saudasse o espantalho.
- Viva o meu catita! Sempre a vigiar, hem?”

Obra de artista rural em Palme



Ilustração retirada do "Romance da Raposa", 
mostrando a raposa, cheia de troça, a saudar o pobre espantalho



quinta-feira, 31 de maio de 2018

Futebol, o ópio do povo

- Para ti, qual é a coisa mais importante da vida?
- Para mim é o futebol!...
Esta resposta ouvia-a eu há tempos da boca de um palmense a meio de uma conversa mais ou menos banal e filosófica sobre a vida. O futebol! Na altura não dei grande importância, mas depois fiquei a matutar no assunto. Na verdade, liga-se a televisão e raro é o dia em que não esteja a dar um jogo de futebol, na rádio os programas de comentário e debate sucedem-se, nas redes sociais um dos temas mais abordados e usadas para as pessoas se insultarem é o futebol, os jornais desportivos vivem das querelas da bola, as revistas cor-de-rosa das férias e dos luxos em que os jogadores e dirigentes vivem, etc., etc. Como foi possível chegar a este ponto? Por que razão é o futebol tão importante na vida das pessoas?

Em meados da década de 1990, o futebol não tinha a importância mediática e social que hoje detém. Os próprios desafios de futebol passavam no segundo canal, que já na altura era um canal com conteúdos mais alternativos e menos preocupado com audiências. É claro que nesse tempo já havia adeptos inveterados, que andavam de transístor colado ao ouvido, a escutarem os relatos dos domingos à tarde, quando normalmente aconteciam todos os jogos. A partir de meados da década de 1990, as coisas principiaram a mudar. O futebol foi progressivamente conquistando mais espaço na comunicação social, surgiram os programas de debate com comentadores residentes, apareceram os canais no cabo com o exclusivo do direto do futebol numa lógica de que “se queres ver, paga”, e mais recentemente, os principais clubes criaram os próprios canais, até com direitos de transmissão dos jogos em casa. Há jogos da liga às sextas, sábados, domingos e segundas; às terças, quartas e quintas há competições europeias. Depois há os jogos das taças e da seleção isto já para não falar dos campeonatos dos outros países. Há jogos de manhã, à tarde e à noite e, nas raras ocasiões em que não há desafios em direto, repetem-se os da véspera. Em qualquer café, independentemente do dia ou da hora, o retângulo relvado com 25 indivíduos a correr atrás de uma bola está a passar na televisão. Na deprimente época de defeso, para além do tema das transferências, passam-se jogos a feijões, amigáveis, jogos de preparação, partidas com antigas estrelas, jogos de escalões mais jovens, futebol feminino, futsal, futebol de praia, matraquilhos que seja, mas a bola tem que estar sempre a rolar. A seguir aos jogos, entram em cena os programas de comentário e análise às partidas com personagens normalmente associadas aos três principais clubes. O aperitivo destes debates, moderados por jornalistas pouco isentos, é a desonestidade intelectual dos argumentos utilizados (três pessoas tem três opiniões diferentes do mesmo lance), as picardias a roçar o insulto com que os comentadores se tratam (“você não me chama animal, ouviu!)”, e a forma primária como os árbitros são cilindrados. Estes programas são uma espécie de big brother anedótico do futebol, onde todos os tipos de dislates são permitidos. Isto seria cómico se alguns destes comentadores (ou “paineleiros” como já foram apelidados) não fossem pessoas que exercem cargos políticos, que foram antigos assessores de ministros, figuras públicas ou simplesmente, aspirantes a alguma coisa na vida que mais não sabem fazer que mandar umas bordoadas nas equipas adversárias e nos árbitros. Então é legítimo perguntar: se estes cavalheiros são tão erráticos no comentário futebolístico, que credibilidade é que terão no desempenho das suas profissões? A resposta está à vista. Há quem siga religiosamente estes programas, quem conheça os nomes de todos os jogadores e quem saiba os jogos e classificações de todas as ligas, incluindo de campeonatos tão destacados como o Albanês. Será o futebol merecedor de tanta importância e atenção?

Na órbita do futebol (nacional e internacional) gravitam todos os tipos de crimes, delitos e delinquentes. Ao nível dos dirigentes, corrupção, tráfico de influências, fuga aos impostos, branqueamento de capitais, etc. é o pão nosso de cada dia. Os cargos dirigentes, além do atrativo da remuneração, são disputados por uma outra razão: poder. E é pelo seu poder económico e social que o futebol se tornou tão importante. Por isso, é ao nível do dirigismo que estão associados os maiores crimes. Imediatamente a seguir, a operar na penumbra, está uma classe de sanguessugas que dá pelo nome de empresários, que manobram nos bastidores, que exercem influências e que cobram comissões chorudas das transferências dos jogadores sem deixar rasto. Depois há os investidores que enterram milhões e milhões em clubes falidos. Alguém no seu perfeito juízo investiria dezenas ou centenas de milhões de Euros em empresas falidas? Claro que não! Então por que o fazem no futebol? Para simplesmente lavar dinheiro, proveniente do crime (tráfico de droga, gestão danosa de empresas, de offshores, da máfia, etc.). Mesmo que se percam alguns milhões com os investimentos no futebol, os clubes são uma boa lavandaria. É sabido, por exemplo, que o apogeu dos clubes galegos em meados da década de 1990 esteve associado a dinheiro do narcotráfico proveniente da América do Sul. Depois, o que os jogadores e treinadores ganham é obsceno para qualquer cidadão comum. Muitos podem-se esfalfar a vida toda a trabalhar, que não ganham o que alguns jogadores auferem num único mês e que levam uma vida principesca, cheia de mordomias e de luxos. E porquê? Porque sabem dar uns pontapés numa bola, ainda que mal saibam falar ou escrever. E depois há as claques de futebol, que mais não são que hordas de caceteiros e delinquentes que usam o futebol como meio para atingir outros fins, nomeadamente para semear a violência, o ódio, o racismo, o neo-nazismo, entre outros fins hediondos. Em Portugal, estas claques já foram responsáveis por assassinatos em estádios, por destruições diversas (viaturas, estações de serviço, estádios), por agressões violentas a agentes de autoridade, por atropelamentos fatais e até, como sucedeu recentemente, por agressões a elementos da própria equipa.

Os adeptos e a justiça (os próprios agentes judiciários também estão envolvidos) olham com complacência para o atoleiro de vícios e de crimes em que o futebol está mergulhado. E assobiam para o ar. A posição da justiça ainda se percebe, porque come da mesma gamela, agora os adeptos é mais difícil de entender. Por mais claros que sejam os indícios criminais, os adeptos, numa fidelidade canina aos dirigentes e comentadores, falam de cabalas, de calúnias e de artimanhas engendradas pelos adversários para descredibilizar o próprio clube. E cerram fileiras. O futebol debate-se acaloradamente e de forma fanática, mesmo com a consciência de que os clubes são pântanos de interesses nebulosos e de crimes. O futebol transformou-se, pois, numa religião fundamentalista. Numa época em que a política há muito caiu em descrédito (como o comprovam as elevadas taxa de abstenção) e que a igreja perdeu a maior parte dos praticantes e atravessa uma crise de fé, o futebol emerge como a última das religiões do povo. Porém, o culto religioso alterou-se. A religião monoteísta do deus único deu lugar a uma religião politeísta, composta por vários deuses (dirigentes, treinador e jogadores) com graus de importância diferenciada à semelhança da mitologia grega e romana da Antiguidade. A igreja, lugar frio, escuro e húmido, foi trocado pelo confortável sofá em frente ao led ou pela mesa repleta de minis no café em frente ao ecrã gigante. O deus não está mais num altar distante, mas os deuses jogam todos os fins-de-semana no estádio e entram pela nossa casa dentro sem pedir licença. O deus que ninguém consegue ver no céu foi substituído por deuses que podem ser vistos ao vivo e a cores nos estádios. Há recintos conhecidos por “catedral” e dirigentes apelidados de “papa”. Os paralelismos são tantos que não restam grandes dúvidas que o futebol é a nova religião do povo. No século XIX, uma das frases mais célebres de Karl Marx, um dos principais teóricos do comunismo, foi “a religião é o ópio do povo”. Nos tempos que correm não parecem restar grandes dúvidas que o mais correto será dizer: o futebol é ópio do povo.



segunda-feira, 30 de abril de 2018

O dia de páscoa

A Páscoa este ano celebrou-se no dia 1 deste mês de abril. Em Palme, como de costume, a visita pascal efetuou-se nos dias 1 e 2, ou seja, no domingo e na segunda-feira de Páscoa, porque o compasso não consegue (ou não quer) percorrer a freguesia toda num só dia. A Páscoa é uma celebração bem original por um conjunto de motivos. Para o post deste mês propõe-se então uma reflexão sobre a Páscoa.

Como todos sabem, a Páscoa celebra a ressurreição de Cristo. Não vamos aqui discutir as várias teorias a respeito da ressurreição. Talvez isso fique para mais tarde. É ponto assente que a Páscoa é o acontecimento mais importante do calendário católico. Como todos também sabem, a Páscoa não tem um dia fixo e a data para a sua celebração cai no intervalo compreendido entre os dias 22 de março e 25 de abril. Na verdade, a data precisa da Páscoa rege-se por fenómenos astronómicos, nomeadamente pela primeira lua cheia depois do equinócio da primavera. Ou seja, a Páscoa cai no primeiro domingo depois da primeira lua cheia após o equinócio primaveril, que ocorre a 21 de março. Assim, se a lua estiver cheia for logo após o equinócio, a Páscoa celebra-se cedo; porém se a lua tiver sido cheia pouco antes do equinócio, é preciso aguardar um novo ciclo lunar (quase um mês) para que a lua volte a ficar cheia. Nesse caso, a Páscoa celebra-se mais tarde, em meados de abril. Ao contrário do Natal, sobre o qual se desconhece por completo a data em que ocorreu o nascimento de Cristo (a data de 25 de dezembro é meramente evocativa), relativamente à data da Páscoa há mais algumas certezas, pois nos Evangelhos é dito que ela ocorreu pouco depois da Páscoa judaica e que durante a última ceia (na quinta feira-santa, véspera da crucifixão de Cristo) estava lua cheia. É sabido desde tempos remotos que a Páscoa judaica, que comemora o êxodo dos judeus do Egito, se celebra no mês de Nisan, mais precisamente no 14º dia de Nisan, que corresponde aos nossos meses de março/abril. Com o passar do tempo e com o crescimento do cristianismo, a Páscoa cristã acabou por subjugar para segundo plano a Páscoa judaica. Mas não só esta. Antes do cristianismo, no norte e centro da Europa, havia uma festa pagã em homenagem à deusa Eostre, em que se celebrava o culto da fertilidade associado ao início da primavera. Nesta festa pagã havia o costume de oferecer aos amigos e familiares ovos muito coloridos. Os ovos são representativos da fertilidade feminina e este velho costume celta foi apropriado pela igreja e ainda hoje se utiliza pintar ovos (por exemplo, cozendo-os com cascas de cebolas) para decorar as mesas pascais com eles. O coelho, relacionado com a fertilidade, era também um dos símbolos associados a esta festa pagã e também ele foi reconvertido em mascote da Páscoa católica. A própria designação inglesa de Páscoa (Easter) é um termo que deriva diretamente da deusa Eostre. Assim, a Páscoa cristã atingiu simultaneamente dois objetivos: subjugou para segundo plano a Páscoa judaica e acabou com a antiga tradição pagã da deusa Eostre.

Passemos a mais alguns factos curiosos sobre a forma como se comemora a Páscoa atualmente. A sexta feira-santa é, segundo o calendário religioso, feriado ou dia santo de guarda, para além de ser dia de jejum e abstinência. Como é o dia que evoca o sofrimento e morte de Cristo, o feriado justifica-se por ser um dia triste, dedicado à reflexão e oração. Estranhamente, a sexta-feira santa é o único feriado religioso em que as pessoas trabalham como em qualquer outro dia da semana. Quando se compara o desrespeito deste feriado com a solenidade dada aos feriados de 15 de agosto, 1 de novembro ou 8 de dezembro, por exemplo, fica-se sem resposta. Poderão dizer que muitos trabalham à sexta para não trabalhar na segunda. Isso é ainda mais estranho, pois a segunda-feira, para além de não ser feriado, é um dia normal de trabalho em todo o lado. Quem conhecer a realidade do interior ou do sul do país (já para não falar no estrangeiro) sabe que isto é verdade. É evidente que sabe bem ficar em casa na segunda-feira, até podia haver uma terça-feira e uma quarta-feira de Páscoa, mas o fundamento deste dia de folga resume-se a uma tradição meramente minhota.

Um outro aspeto que desfigura completamente as celebrações e o espírito pascal são as missas de aleluia em pleno sábado, tal como sucedeu em Palme. Ainda o sol não se tinha posto e já se anunciava a ressurreição com foguetes. Ou seja, pouco mais de 24H depois de se celebrar a morte de Cristo (definida como tendo sido às 15H da sexta-feira) já se está a anunciar o aleluia. Isto faz algum sentido? As celebrações atuais fazem-se completamente à revelia do que está escrito, ou seja, que a ressurreição ocorreu ao terceiro dia. Podem dizer que o que interessa é a intenção e a devoção, mas não parece de todo que este procedimento seja correto. Era o mesmo que celebrar o feriado de 25 de abril, na véspera ou na ante-véspera. Não faz grande sentido.

Quanto à visita pascal, a tradição lá se vai mantendo. Este ano houve cerca de 70 casas que abriram as suas portas ao compasso. É um número que não é mau, apesar de estar longe do que acontecia há uns anos atrás. Hoje nas mesas repletas do bom e do melhor gastam-se largas centenas de Euros, para além da canseira em preparar e organizar tudo. Por isso muitas pessoas optam por não abrir as casas e aproveitam os feriados prolongados para irem passear. Mas nem sempre foi assim. Os mais velhos referem que antigamente as mesas pascais eram compostas por uma bacia com tremoços e azeitonas, um prato com aqueles doces da feira cobertos de açúcar branco (cavacas) e uma caneca de vinho tinto. E mais nada! E os caminhos estavam todos atapetados de flores pois praticamente todas as casas recebiam o compasso. É caso para dizer, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades!

sábado, 31 de março de 2018

A estrada nacional 305


A estrada municipal 305 (EM305), rebatizada há alguns anos “Rua de Palme” pela equipa de toponímia que não foi capaz de descortinar um melhor nome, encontra-se num estado calamitoso. O tapete asfáltico está lanhado, gretado, rachado e repleto de buracos, alguns tão grandes que se assemelham a crateras. A chuva torrencial destes dois últimos meses só tem agravado o problema e circular nesta estrada devia ser apenas autorizado a tratores agrícolas, principalmente na faixa no sentido Aldreu-Figueiró. A condução é uma autêntica prova de perícia, obrigando os condutores a ziguezaguearem para fugirem aos buracos e ao pavimento degradado. Senão, da próxima vez que o carro for à inspeção, zás, anomalia no teste: o veículo apresenta um desalinhamento de direção de 40%...a suspensão está quebrada…

Os tapetes asfálticos têm uma duração de vida aproximada de 15 a 20 anos no máximo. O tapete que temos aqui na “rua de Palme” terá perto de 20 anos. Aquando da última intervenção, foi colocado um tapete com uns dois dedos de altura, para não entrar muito ao bolso da câmara, que é a responsável pela gestão desta estrada, desde que ela foi desclassificada de estrada nacional. No início, sim senhor, até dava gosto deslizar na estrada, perfeitinha e sem irregularidades. Mas à medida que o tempo foi passando, as infiltrações, os abatimentos do solo, as raízes das árvores metidas por baixo do tapete e, principalmente, a pressão exercida pelos veículos pesados deram cabo do pavimento. Depois vieram os tapa-buracos, deitaram para as zonas mais escarafunchadas umas pazadas de gravilha untada de piche e a coisa vai-se mantendo assim. Foi isso que fizeram esta semana. É um remedeio, pois mais umas semanas batidas a chuva e os buracos voltam a aparecer. É verdade que este problema não é exclusivo deste troço, pois se continuarmos na mesma via em direção a Palmeira de Faro, já no concelho de Esposende, o tapete não está em melhor estado, bem pelo contrário.

Para além do tempo de vida no limite e da pequena camada de asfalto colocada na altura, um dos principais agentes destruidores do piso são os veículos pesados, nomeadamente os camiões carregados de areia que percorrem esta estrada. Desde há alguns anos a esta parte, diariamente, dezenas e dezenas de camiões com milhares de toneladas de areia nos reboques têm rebentado a estrada por completo. Pelas 8 da matina, é vê-los passar a intervalos de cinco minutos, os motores a roncar com o esforço, lentos como caracóis com as casas às costas, seguidos por longas filas de carros impacientes, a dirigirem-se pachorrentamente para as zonas de Esposende, Barcelos ou Braga. Por isso mesmo é que a faixa no sentido Aldreu-Figueiró está bastante mais deteriorada que a outra. 

As coisas não deveriam ser assim. É evidente que a via é pública e que qualquer um pode nela circular. Porém, o tapete não foi dimensionado para uma circulação tão intensa de veículos pesados. Se tivermos em conta a deterioração causada por estas empresas de camionagem e de caulinos, deveriam ser tomadas medidas para condicionar a circulação destes camiões e encaminhá-los por outros acessos para a estrada nacional 103. Mas quais seriam essas alternativas? Provavelmente não as há. Uma outra opção, que se tem conseguido em alguns locais, seria estas empresas compensarem a câmara pelo desgaste provocado no pavimento, contribuindo com uma percentagem para a reposição de um novo tapete. Esta parece ser até a solução mais lógica e equilibrada, mas obrigava a que a Junta e a Câmara fizessem pressão e que se chegasse a um acordo. Não se sabe se alguma destas soluções está na calha, mas não se ouve falar de nada. As autárquicas foram há meio ano e a colocação de um novo tapete asfáltico foi uma promessa de várias listas candidatas à junta, incluindo da vencedora. Por isso, há que fazer pela vida porque, como bem diz a sabedoria popular, “quem não chora não mama”…