quarta-feira, 30 de novembro de 2016

As esmolas de São Miguel

Apesar de não usufruir de grandes bródios em Palme, o São Miguel ocupa um lugar de destaque na hierarquia celestial. Na Bíblia, São Miguel é descrito como o “Grande Príncipe”, como “Príncipe dos Exércitos Celestes” e é dito que estará presente no dia do juízo final. Por causa desta última alusão, São Miguel foi retratado com uma balança com os pratos desnivelados, de onde as almas, pesadas com os pecados, escorregam agoniadamente para o fogo purificador. Esta imagem, amplamente reproduzida, deve-se à crença de que São Miguel estará no fim do mundo, a separar as almas justas das condenadas, encaminhando as primeiras até às portas do paraíso e protegendo-as das tentações do demónio. Por isso, o São Miguel está sempre presente nas orações e nas cerimónias fúnebres e a bandeira do arcanjo segue sempre na dianteira dos cortejos para o cemitério.

Ora, se ao São Miguel foi acometido o pesado encargo de fazer a última triagem de toda a humanidade que viveu ao longo de todos os tempos, encaminhando uns para o paraíso e outros para a geia, não é muito óbvia a associação que lhe é feita às colheitas. A explicação reside no dia em que se comemora o São Miguel, que é o dia 29 de setembro. Quem vive nos meios rurais sabe que setembro é o mês forte das colheitas, altura em que há uma espécie de assalto em larga escala ao que a natureza produziu. É apanhado o feijão, o milho sai em braçadas ou em moinha pelos tubos das trituradoras, os cachos das uvas são decepados com golpes de tesoura e de navalha. No final de setembro, os campos ficam feios e desnudos, numa tristeza de violação consentida. Mas, se o ano foi bom, as tulhas, os silos e os barris ficam a abarrotar, numa fartura que dá para o ano inteiro. Sempre foi assim. Por isso, o São Miguel comemora-se numa época de muito trabalho, mas também de abundância, e não faltam por aí feiras e festas do São Miguel alusivas às colheitas. Até em Palme, em setembro do ano passado, se fez uma feira das colheitas, embora o evento não se tenha repetido em 2016.

Nos meios rurais, Palme incluído, aproveitou-se este período de fartura para se fazerem peditórios de géneros agrícolas que, depois de leiloados, ajudam a fazer face aos encargos das confrarias religiosas ou das comissões de festas. Estes peditórios são conhecidos por “esmolas de São Miguel” e têm lugar no início de outubro. No passado, as esmolas arrebanhadas eram muito mais parcas do que hoje. Em tempos de penúria, as pessoas davam uma malguinha de feijão, meio quarto de milho, um fundo de batatas numa saca pequena. Não eram precisos veículos para transportar as oferendas, pois os esmolantes carregavam-nas facilmente às costas. Mais para cá, as esmolas profissionalizaram-se e surgiram os bombos e a utilização de um trator para transportar as dádivas. Nos últimos anos, provavelmente porque não há quem toque os bombos, institucionalizou-se o uso do altifalante, armado numa carrinha de caixa aberta, a passar folclore e música popular. E, em tempo de vacas gordas, os esmolantes tornaram-se mais ávidos: já não lhes chega a arroba de milho; também querem aquele par de galos, aquele vaso de orquídeas (que rico) e um frasquinho de mel daquelas colmeias Ou então simplesmente dinheiro, que é mais leve e não é preciso arrematar. E afinal, o carcanhol é que faz falta.

Em Palme, este ano, as esmolas de São Miguel foram tantas, que se arrastaram de outubro quase até dezembro. São demasiados peditórios num espaço tão curto de tempo e, muitas pessoas, e com razão, já se andam por aí a queixar. Então vejamos: esmola das Almas, esmola do Senhor, esmola do Santo António, esmola da Senhora dos Remédios (este ano foram duas) e esmola para o Palme Futebol Clube. Se a isto acrescentarmos o peditório para a festa de Santo André, que se fez em finais deste mês, e o do Menino, que vem já a seguir, são sete peditórios seguidinhos. Já para não falar do pagamento da Premissa que, como os mais cumpridores sabem, deverá ser feito em outubro. São, obviamente, demasiados encargos religiosos, até porque muita gente não tem géneros agrícolas para oferecer e têm que contribuir com dinheiro. E para aqueles que têm filhos a estudar, os meses de setembro e de outubro são férteis em despesas. 

O bom senso recomenda, pois, que para não sobrecarregar a população, os peditórios fossem distribuídos ao longo do ano. Porque não realizar os peditórios que se fazem apenas em dinheiro noutra altura do ano? Qual o sentido destes peditórios se fazerem no São Miguel se só recolhem dinheiro? Porque não limitar os peditórios em géneros a dois por mês? Se nada for feito é provável que as pessoas se encolham, só deem a quem tiverem mais devoção, dividam o que davam antes por mais peditórios ou, simplesmente, fechem a porta e não apareçam. Em boa parte, este problema resulta do grande número de festas religiosas que a freguesia atualmente comporta. Numa altura em que se assiste à supressão de festas e se sentem dificuldades para organizar comissões um pouco por todo o lado, não deixa de ser curioso que, em Palme, o número de festas tenha aumentado. Será que se vão aguentar? Este assunto fica para um próximo post do blogue.