terça-feira, 31 de março de 2015

Vinho de maçã (Sidra)

Em Julho do ano passado, por razões profissionais, tive que me deslocar à Normandia. Nunca tinha estado naquela região de França, que está indelevelmente associada à história mundial, por ter sido o local onde as tropas aliadas desembarcaram para rechaçar os ocupantes nazis, dando início à libertação da França. Gostei das paisagens verdejantes e das temperaturas amenas que encontrei, das manhãs com neblinas que me fizeram lembrar o litoral Norte de Portugal. Nessa viagem curta, de apenas uma semana, fiquei a saber que a Normandia é uma das regiões de excelência de produção de sidra, ou seja, de vinho de maçã, por causa das suas especificidades climáticas. Confesso que nunca tinha provado tal bebida, apesar de se encontrar em qualquer superfície comercial. Levei à risca o princípio de “em Roma sê Romano” e resolvi provar a afamada sidra da Normandia. Foi uma agradável surpresa, é uma bebida fresca, aromática, com uma vivacidade e uma tonalidade que recorda o Champagne. Durante esses dias de verão tépido no noroeste de França, ataquei a sidra sempre que pude.

À chegada, resolvi investigar um pouco mais sobre esta bebida. Li alguns documentos, assisti a vídeos relativos ao processo de produção e, vai daí, tomei uma firme decisão: a de tentar produzir uma sidra caseira? Nos próximos parágrafos vou descrever todos os passos que segui para confecionar o meu próprio néctar caseiro de maçã.

Em Palme, 2014 foi um ano de muita maçã, o que facilitou a realização da experiência, caso contrário teria que comprar a matéria-prima. Assim, o primeiro passo foi o de apanhar uma quantidade considerável de maçãs. Apanhei cerca de 20 kg. Procurei utilizar maçãs de três variedades, embora duas delas não saiba ao certo de que variedade são. Uma delas é espriega portuguesa, a outra será royal gala ou starking, a terceira, definitivamente, não sei.

A segunda etapa consistiu em submeter as maçãs a uma lavagem rigorosa. Esta operação era ainda mais importante pelo facto de estar a utilizar algumas maçãs caídas no chão. Foram submetidas a três ou quatro lavagens, tendo ficado bem escaroladas e luzidias. De seguida, foi necessário retirar as partes amachucadas, furadas e putrefatas das maçãs. Aqui os cuidados deverão ser redobrados, pois a utilização de partes podres poderá afetar o paladar da sidra. Acabei por retirar também os caroços, ficando apenas com as fatias sãs e limpas das maçãs.

Figura 1: Maçãs lavadas e partidas

Realizada esta tarefa, a operação seguinte foi a de triturar as fatias/metades das maçãs para converter tudo numa pasta. Pensei em várias opções (liquidificadora, picadora, etc.), mas atendendo à quantidade (e ao que me custaram as máquinas) decidi recorrer à tradicional esmagadora das uvas. Como é bom de ver, este aparelho foi concebido para esmagar uvas, que são mais moles e sumarentas do que as maçãs. Apesar de não reduzir as maçãs a uma pasta uniforme, a esmagadora cumpriu grosseiramente e de uma forma rápida as funções pedidas. No entanto, este será um dos aspetos a melhorar futuramente.

Figura 2: Aspeto das maçãs após trituração

Com as maçãs amassadas desta forma, a quantidade de sumo visível foi reduzida, o que me causou apreensão em relação à quantidade final de sidra que conseguiria obter. Por isso, havia que apertar a pasta para extrair todo o sumo possível. Vai daí, coloquei a esmagada de maçã numa prensa e apertei quanto pude (na forma tradicional, os franceses colocam as maçãs na prensa sob camadas de colmo). Da fonte da prensa começou a sair um fio amarelo e transparente de sumo de maçã. Logo ali, para me compensar do trabalho e do esforço, entornei dois copos do delicioso sumo de maçã natural, extraído por processo mecânico. Ao todo, a fonte jorrou cerca de 13 litros de sumo, nada mau quando pensei que fosse dar uns 3 ou 4 litros. Recolhi um copo de sumo e pesei-o: a escala deu indicações que a bebida teria uma percentagem de álcool de 7%. Nada mau também.

Figura 3: Prensagem da esmagada

Figura 4: Pesagem do sumo

O sumo de maçã foi, então, colocado em garrafões esterilizados de vidro de 5 litros, onde decorreu o demorado processo de fermentação, durante o qual as simpáticas leveduras transformam os açúcares em álcool. Como não tinha borbulhadores para colocar nos garrafões, resolvi furar as rolhas e meter-lhe umas mangueiras plásticas, que foram mergulhadas num recipiente com água. Dessa forma era possível acompanhar a fermentação e evitar o contacto do sumo com o oxigénio. Não acrescentei absolutamente nada ao sumo, nem açúcar, nem leveduras, deixei que o processo decorresse da forma mais natural possível. Ao fim de dois dias, começaram a surgir as primeiras bolhinhas de ar (dióxido de carbono) na água, sinal de que as leveduras já estavam a atuar e que a fermentação se tinha iniciado. Ao contrário do vinho, cuja fermentação é rápida e intensa, a das maçãs é lenta, tendo demorado cerca de 3 semanas.

Figura 5: Sumo em garrafões de 5 l

Figura 6: Preparativos para a fermentação


Depois da fermentação ter terminado, deixei estar a sidra mais uma semana em repouso. A etapa seguinte foi a de passar a sidra para garrafas devidamente esterilizadas. Reparei que havia uma quantidade considerável de pouso no fundo dos garrafões. Para evitar que estes sedimentos fossem engarrafados, utilizei filtros e uma mangueira para passar a sidra, por gravidade, dos garrafões para as garrafas, tarefa durante a qual já deu para provar o néctar ainda cru assim obtido (gostei logo na ocasião). De seguida, coloquei rótulos nas garrafas (tudo muito profissional) com o nome da propriedade onde tenho as generosas macieiras. Por último, as garrafas foram armazenadas para estagiar durante algum tempo.

Figura 7: Vinho de maçã engarrafado e pormenor do rótulo


Em Março, ou seja, quatro meses depois, não aguentei mais e decidi abrir a primeira garrafa. A rolha saiu com estrondo, a sidra apresentava uma cor cristalina, com seiva efervescente e um agradável aroma a maçã. Faltava submeter o néctar à definitiva prova oral das papilas gustativas. O teste superou as melhores expectativas, a sidra é leve, ligeira e equilibrada, com travo inebriante de maçã com notas frescas de citrinos e um final de boca que apetece repetir. Por isso, a garrafa durou apenas uns instantes, tendo convencido uns convivas que também provaram e gabaram a bebida.

Foi esta a experiência, a de produzir, em Palme, uma sidra 100% natural feita a partir de maçãs biológicas e por processos meramente artesanais, que resolvi trazer aqui hoje. Fiquei fã da bebida e vou tentar aperfeiçoar o processo de fabrico no futuro, nomeadamente o da trituração. Em breve vou partilhar convosco outras experiências similares. À vossa!