domingo, 20 de setembro de 2020

As sagradas vizinhas: parte 1 (O confronto)

Palme é terra de gente católica apostólica romana, que segue à risca as regras da Santa Madre Igreja. E que não se deixa intimidar por nenhum viruszito, que dá umas dores de garganta, umas tossidelas secas e pouco mais. Há até quem afirme que tudo isto não passa de uma cabala para afastar as pessoas da Igreja e da lei de Deus. Ora se os cafés estão apinhados de gente, se já se fazem feiras, touradas, concertos, se até os comunistas puderam fazer a festa do Avante, porque carga de água não pode um cristão celebrar a sua fé em paz e sossego? 

Depois do temerário episódio das celebrações transmitidas por altifalante em Maio ao arrepio das diretrizes da DGS e da própria Conferência Episcopal, que trouxe a GNR ao adro da Igreja, Palme volta a mostrar a fibra de que é feita e repôs a circulação da Sagrada Família, que, diariamente, passa de mão em mão pelos vários lugares da freguesia. E o verniz estalou de novo. Uns não veem qualquer problema: a amarra de transporte da caixinha sagrada é limpa e desinfetada, que risco é que isso traz? Outros não compreendem a reposição desta tradição no início de uma segunda vaga da pandemia, pois a medida promove o contacto social e há pessoas descuidadas que se vão esquecer de desinfetar o objeto sagrado. Uns dizem que sim, outros dizem que não, uns criticam o padre, outros a fabriqueira; uns tomam conta da Sagrada Família, outros recusam-se terminantemente a recebê-la. Como é bom de ver, estavam criadas as condições para a confusão. 

O sarrabulho aconteceu esta semana e envolveu duas vizinhas: a Maria de Fátima, um portento de bons exemplos, que conta no currículo com seis dos sete Sacramentos da Santa Madre Igreja (Batismo, Confirmação, Eucaristia, Penitência, Unção e Matrimónio), vinte anos a catequizar as crianças da terra e dez anos de formação de cursos matrimoniais; e a Vera, uma alma de pouca virtude, de comportamentos algo desviantes da boa moral católica e que só é vista na igreja de longe a longe. Por isso, as vizinhas não se davam por aí além. O diálogo e as cenas ocorridas descrevem-se de seguida textualmente tal como sucederam. Então, foi assim:

Ao final da tarde, a Maria de Fátima depois de tocar insistentemente à campainha e como ninguém lhe aparecesse, começou a dar grandes punhadas à porta e a gritar pela vizinha, o que desde logo enfureceu a Vera, que estava a fritar uns jaquinzinhos que lhe estavam a ficar colados à sertã.

- O que é que você quer? Tem a casa a arder ou quê?!

- Estou aqui à meia-hora a chamar e ninguém aparece, pareceis todos moucos. Olha trago-te aqui a Sagrada Família, é a tua vez de ficares com ela…

- O quê? Mas isso não tinha já acabado? Eu não tomo conta…vocês andam mas é a espalhar a doença a passar isso de casa em casa. Tenha juízo, até parece impossível numa altura destas…!

- Ó mulher, olha que eu lavei as mãos e desinfetei tudo antes de sair de casa. Não há perigo. Quem anda ao serviço de Deus não apanha doença, pelo contrário, o Menino até nos protege da bactéria!

- Já lhe disse que não e não! Não arrecebo! O que eles querem é que o pessoal meta a moedinha na ranhura, mas comigo não têm sorte. Nas outras freguesias não há nada disto, só mesmo em Palme…!

- Tu falas assim porque não tens temor nenhum de Deus, e nem queres saber da igreja para nada. Olha que exemplo dás à canalha, nem vais à missa, nem ao confesso, já praí há vinte anos que não comungas, vives como um autêntico animal. Emenda-te mulher!

- Ouça lá, que é que você tem a ver com a minha vida, com o que eu faço ou deixo de fazer? Meta-se na sua vida sua cabaneira! Você é toda santinha, sempre a bater no peito, mas roubou quanto mais pôde os seus irmãos e depois nas partilhas ainda os meteu a todos em tribunal! Que rico exemplo, não haja dúvida!

A Maria de Fátima, com a inesperada acusação, enrugou a testa, franziu o nariz e avespinhou-se:

- Olha, mas ao menos não passo a vida na cainça como tu, que és puta como uma rata. O teu home tinha uns cornos tamanhos, que nem o caixão fechava quando morreu. E agora arrecebes em casa solteiros, casados e viúvos, em tendo dinheiro, tens sempre as pernas abertas. Grande cadela que estás a dar cabo de tantos lares na freguesia e a dar tão maus exemplos a essas raparigas!

- Você fala assim por falta de peso, o ti Januário já não pode, não é?! Também coitado, depois de passar a vida a aturá-la, como é que ele havia de estar são da mioleira?!

Ao ouvir tais palavras, a Maria de Fátima sentiu uma adaga a espetar-se-lhe nas entranhas e a vista a fugir-lhe. Cega de raiva, agarrou na sagrada caixa com as duas mãos, levantou-a o mais que pôde e espetou-lha pela cabeça abaixo. A Vera, combalida da mocada, com o sobrolho e o nariz a esguichar sangue, caiu na calçada. Ao lado estava a caixa estatelada, com o vidro partido, as figuras espalhadas pelo chão e o pobre do São José sem cabeça. A Maria de Fátima sentiu um relâmpago a trespassar-lhe a alma e pressentiu que pecara mortalmente. Recolheu as figuras espalhadas na calçada e, enquanto procurava a cabeça do São José, via a sua alma a afundar-se nas chamas do fogo eterno do Inferno. A Vera de bruços no meio da calçada tentava levantar-se, quando de repente lhe entrou um cheiro forte a queimado pelas narinas ensanguentadas. E só pôde murmurar:

- Ai que lá se foram os meus jaquinzinhos!...