domingo, 30 de setembro de 2018

É proibido cuspir


De acordo com o dicionário da Porto Editora, cuspir consiste no ato de “expelir cuspo” ou seja do líquido segregado pelas glândulas salivares. A mesma fonte explica que escarrar é o ato de cuspir escarros, de expetorar. E também diz que o escarro é uma “matéria viscosa segregada pelas mucosas (em especial, das vias respiratórias) e expelida pela boca”. Ambos os atos, cuspir e escarrar, são usados como sinónimos, pois significam expulsar, por via oral, líquidos e matérias viscosas, mais ou menos pegajosas, de coloração variada, que vai do branco ao verde, passando pelo amarelo e vermelho quando contém vestígios de sangue.

Cuspir e escarrar é algo que está muito enraizado na cultura portuguesa. O ato em si reveste-se de todo um cerimonial. Primeiro é preciso puxar ruidosamente o escarro das profundezas abissais das ramificações pulmonares. Dependendo do nível de entupimento das vias respiratórias e da contração dada, poderá ser necessário mais de que um arranco cavernoso para fazer subir os fluidos ao nível bocal. Uma vez na boca, a próxima etapa consiste em moldar e enrolar convenientemente a viscosa em forma de projétil, para que saia tudo de uma só vez. O último passo é o da expulsão da dita cuja, que é arremessada com um som característico (thsssppp) a uma velocidade variável que pode atingir os 20 km/h. A escarradela tem duas variantes. A forma mais pura e tradicional é a de cravar diretamente o escarro no chão ou numa parede lateral. Quem se aventurar pelas ruas da cidade de Barcelos num dia de feira, sobretudo durante o inverno, quando os achaques das vias respiratórias são mais frequentes, depara-se com as ruas salpicadas de grossos e coloridos escarros, que obrigam a fazer autênticas gincanas para os não pisar. Nessas alturas, tenho sinceramente pena das pessoas marrecas, que andam com os olhos espetados no chão e são obrigadas a apreciar este espetáculo degradante. A forma mais civilizada e fina de escarrar é praticada por aqueles que trazem na algibeira um lenço da mão. Nestes casos há um segundo ritual que consiste em fazer um compasso de espera com o escarro na boca enquanto se vai ao fundo do bolso das calças pescar o lenço, o qual se desdobra pausadamente. Com o lenço aberto e amarrado com as duas mãos, o escarrador profissional crava a bisca no centro geométrico do lenço, fita-a durante uns instantes, dobra o lenço e deposita-o cuidadosamente no bolso, para não amachucar o escarro. Como todos se recordarão, um dos melhores mestres desta prática foi o padre Afonso, que cometeu a proeza de nunca ter falhado o alvo (o lenço da mão), para grande alívio dos paroquianos que tinham lugar reservado mesmo por baixo do púlpito. O ato de cuspir e de escarrar é tão generalizado em Portugal que poderia ser convertido em desporto nacional ou até em modalidade olímpica. Há competições para ver quem escarra mais longe, para ver quem escarra mais alto, quem escarra mais vezes durante um determinado período de tempo, quem consegue acertar num determinado alvo com a bisca, etc. Em Palme também temos ótimos praticantes desta modalidade, que seriam sempre sérios candidatos a um lugar no pódio em qualquer prova nacional ou internacional.

Mesmo em clássicos da literatura portuguesa, o escarro está muito presente. A obra de Eça de Queirós é fértil em escarros. Em Os Maias, por exemplo, encontramos esta passagem:
“Como o Sr. Dâmaso Salcede recusava retratar-se e rejeitava também uma reparação pelas armas, Carlos da Maia prevenia-o de que em qualquer parte que o encontrasse, daí por diante, fosse numa rua, fosse num teatro, lhe escarraria na face…
- Escarra-me! – berrou o outro lívido, recuando, como se o escarro viesse já no ar.”

É curioso que a forma como o Dâmaso recuou, como se o escarro viesse já no ar, faz lembrar o episódio recente entre o ex-presidente do Sporting, Bruno de Carvalho, e o seu homólogo do Arouca, que se queixa de ter sido escarrado pelo primeiro. As imagens não são claras, terão sido apenas vapores do sofisticado cigarro eletrónico como alega o presidente leonino? Ou terá sido mesmo um fluido viscoso das entranhas do Bruno como alega o presidente arouquense? O que é certo é que tal como Dâmaso, o presidente do Arouca recuou e, logo de seguida, se encristou contra o ex-líder leonino. Um mimo!

Em Portugal, cuspir em alguém, ao abrigo dos artigos 181º e 182º do Código Penal, é considerado crime de injúria. Em diversas cidades por esse mundo fora cuspir num espaço público é punido com coimas. A cuspidela sai particularmente cara em Singapura, com a multa a atingir os 892€. Se o transgressor reincidir, a multa pode chegar aos 4500€. Também em Portugal diversos municípios regulamentaram no sentido de punir o ato de cuspir nos espaços públicos. Por exemplo, em Matosinhos, a multa começa nos 45€ mas pode chegar aos 4500€. Em Oliveira do Bairro, a multa está tabelada em 250€. Cuspir está, portanto, pela hora da morte! Mais vale andar com o escarro o dia inteiro na boca e chapá-lo na sanita quando chegar a casa do que arriscar uma multa destas!

Este historinha vem a propósito de um sinal de proibição de cuspir que está afixado na lota de Esposende. A lota é um local propício ao escarro, devido ao intenso cheiro a peixe e ao triste espetáculo que entra pelos olhos dentro de peixes com as vísceras a irromperem pelas barrigas anavalhadas e de congros, agonizantes, que saltam para fora das caixas e ameaçam trepar pelas pernas acima das senhoras. O que vale é que na lota é tudo fresquinho e não há odores fétidos, a peixe em putrefação, como acontece no interior de algumas carrinhas de venda ambulante. Na referida lota, há mais três sinais de proibição, que toda a gente conhece. Num deles, há um traço vermelho sobre um cigarro. Como facilmente o leitor imagina, é proibido fumar o que é compreensível por se tratar de um espaço fechado. Noutro, há um traço vermelho sobre um copo e talheres cruzados. Como também se percebe, é interdito levar farnel para o interior da lota, assim como o garrafão de tintol. A desculpa de entrar com o garrafão para pôr o peixe em vinha de alhos já foi tentada, mas não colou. Num outro, há um traço vermelho sobre um canídeo. Como todos entenderão, este sinal proíbe a entrada de animais no recinto. Embora o deputado do PAN possa achar que a lota não está a respeitar os direitos dos animais, percebe-se a interdição pelo risco dos cães poderem abocanhar um robalo ou de mandarem uma dentada numa chaputa. Por fim, o quarto sinal mostra-nos um traço vermelho sobre um fundo branco! E aqui fica a dúvida, é proibido o quê? Entrar liso (teso) no recinto? Podia ser mas não é! A legenda esclarece: é proibido cuspir! Então, o sinal de proibido cuspir é assim? Quererá o fundo branco mostrar que o chão deve estar imaculado de escarradelas? Uma busca na Internet revela que há diversos sinais mais esclarecedores do que este para proibir a tradicional cuspidela. Por isso, parece que o autor deste painel cuspiu na própria obra, ou melhor, borrou a pintura por completo…


Sinalética de proibições na lota de Esposende