segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Relógio Suíço

O problema não é de agora. Os sintomas são antigos, mas têm-se agravado nos últimos tempos. Pois é, caros seguidores deste blogue, o relógio e o sino da torre de Palme sofrem de uma maleita desconhecida. É caso para dizer que o proverbio “dar, dá o relógio horas” já não se aplica - pelo menos na nossa terra. O relógio remete-se a prolongados períodos de silêncio, quando dá horas, a gente não se pode fiar nelas, porque não seguem o horário-padrão do Observatório Astronómico de Lisboa, o sino anda descompassado e com timbres esquisitos, ora fala grosso, ora parece uma sineta rachada. Ali anda mistério. O povo, desorientado, fala e protesta. Quem anda num sino são os mais críticos do badalo e da religião, que dizem que quem quiser saber das horas ou de quando são as missas, que comprem uma cebola de pulso.

Nestes assuntos de doenças raras e misteriosas, a primeira coisa que se deve fazer, como toda a gente sabe, é ir à bruxa. Ali podem andar tramas de ateus e de pedreiros-livres, que querem descredibilizar a santa religião. Vai daí a fabriqueira recolheu uma farpinha de madeira do suporte do sino e raspa do verdete do bronze do sino e, numa manhã cedo, foram bater à porta do Razão, em Forjães. O bruxo, digo vidente dotado de poderes sobrenaturais, apareceu meio estremunhado e maldisposto por o terem obrigado a sair dos lençóis tão cedo. Depois de posto ao corrente do problema, perscrutou a farripa de madeira envelhecida, escorreu o verdete da palma da mão direita para a esquerda, farejou as amostras e, por fim, deu a sentença no seu mau hálito próprio do jejum e das más fermentações noturnas: 

- O sino e o relógio não têm mau olhado, nem mandingas, podeis estar descansados. Mas tendes que chamar um especialista para reparar o problema, os melhores são os da Suíça. Podeis ir e da consulta são 50€…

Depois da mocada do bruxo, digo vidente dotado de poderes sobrenaturais, e como nem o sino nem o relógio melhorassem com o tempo, mesmo depois de, por precaução, colocar um raminho de arruda com alho na torre, a fabriqueira lá se decidiu a procurar um especialista. Mas onde raio iam arranjar um médico Suíço? E se um labrego, digo vidente dotado de poderes sobrenaturais, cobra 50€ por uma consulta de cinco minutos, quanto não cobraria um especialista Suíço? Por isso, não estiveram com meias medidas e decidiram-se a chamar a especialista da terra. A Drª lá trepou o escadório da torre da igreja e depois de parar três vezes durante a subida, para tomar ar (a idade não perdoa), lá alcançou o sino. Sacou o estetoscópio da malinha preta e auscultou em cima em baixo, inspire, retenha o ar, expire, novamente, isso…retenha o ar mais um pouco, pronto, pode expirar. A cor esverdeada do sino sugeriu-lhe logo problemas biliares ou hepáticos, uma hepatite talvez. Depois com a palma da mão direita, bateu na mão esquerda fechada em tubo, que ia percorrendo o sino de cima a baixo. O toque batia-lhe a oco e dali concluiu que o sino padecia de gases com certeza, alguma gastrite intestinal ou nervosa (sofreria de ansiedade?). Depois mediu as tensões ao sino: 15-8, não estavam más de todo, um pouco altas, seria preciso cortar no sal. Dali passou ao relógio, mas começou a vista a fugir-lhe das alturas e resolveu descer, desculpando-se que só com uma ecografia é que se podia diagnosticar o problema. No final, receitou Guronsan (um tubo de comprimidos de manhã em jejum) para limpar o organismo, Cholagutt, um frasco 20 minutos antes das refeições para regularizar o fígado e vesícula, e Pankreoflat, uma caixa de comprimidos a seguir às refeições, por causa dos gases. Dieta à base de grelhados e cozidos, alguns legumes (poucos por causa dos gases), álcool e café nem pensar. E prometeu a cura em 8 dias. Mas que o melhor seria levar o sino e o relógio à Maria Paula, para fazer uma bateria de exames completos: análises ao sangue, urina e fezes, ecografia ao relógio e eletrocardiograma de esforço ao sino (a tocar a rebate). A fabriqueira lá foi ao Carneiro aviar a receita, mas descartou logo levar os equipamentos ao centro de diagnósticos. Era só o que faltava, a Drª estava maluca! Seria uma trabalheira montar e desmontar aquilo tudo, um camião para transportar, uma despesa e tanto, nem pensar.

O que é certo é que oito tubos de Guronsan e 16 frascos de Cholagutt e 16 caixolas de Pankreoflat depois, não se notaram melhorias de registo. O sino das poucas vezes que badalava horas, fazia-o fora de tempo, tocava para a missa a rebate e para os batizados dava sinal de finados. Uma confusão! Não seriam problemas mentais, interrogava-se a fabriqueira? Convencidos de que santos da casa não faziam milagres (como se comprovou mais uma vez) e como o falatório era cada vez maior na freguesia, a fabriqueira perdeu o amor a outra nota de 50€ e foi bater novamente à porta do Razão. 

- Que desculpasse incomodar novamente por causa daquele assunto desagradável do relógio de Palme , mas conhecia algum médico Suíço?

O bruxo, digo vidente dotado de poderes sobrenaturais, ficou perplexo com a pergunta.

- Médico? Então vocês foram chamar um médico para resolver o problema do relógio e do sino? Quando falei de especialista, queria obviamente dizer um relojoeiro Suíço. Ou vocês não sabem que eles são os melhores relojoeiros do mundo?!
- Aaaahhh…disseram os da fabriqueira, enquanto lhe passavam para a mão mais uma nota castanha.

E foi então que, um famoso especialista Suíço, que trabalha numa empresa de relógios de Braga, por indicação do bruxo, digo vidente dotado de poderes sobrenaturais, veio a Palme ver o que se passava. Depois de devidamente informado e de verificar as engrenagens e os mecanismos, o Suíço, no seu sotaque germânico, diagnosticou logo o mal. O relógio e o sino estavam velhos e a precisar de reforma. E, com uma precisão matemática, referiu que só a dar horas, o sino batia 336 vezes por dia. Ao fim de 30 anos, idade aproximada do atual mecanismo computorizado, o sino tinha dado mais de 3,5 milhões de pancadas só em horas. Se a isso somarmos todos os outros toques, foram para cima de 7 milhões de badaladas. Era muita fruta! E que a torre do sino era um lugar muito inóspito para se viver, estando sujeito a todas as inclemências do tempo. 

- Por isso, meus amigos, se querem ter tudo a funcionar direitinho como um relógio suíço, há que investir num novo. 

E deixou-lhes um cartão com o contacto…