terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Santo André, o padroeiro

Isto de ter um padroeiro que se celebra em pleno Inverno tem que se lhe diga. Uma coisa é uma festa celebrar-se em pleno estio, quando até apetece a um santo sair da igreja e apanhar um banho de sol sob o palio azul do arco celeste. Uma coisa bem diferente é um santo festejar-se nos dias incertos e carrancudos do Inverno, como sucede no caso do infeliz Stº André, que se comemora no dia 30 de Novembro. Se a cerimónia se resumisse às práticas dentro de portas, menos mal. Está certo que, mesmo para um santo, há programas mais aliciantes que os circunlóquios intermináveis do pároco da freguesia ou dos sermões com que o pregador de serviço, ora com arrancos cavernosos, ora com sussurros inaudíveis, esmaga a assembleia com o poder da sua retórica, pese embora o discurso ser sempre o mesmo.


O pior é que a freguesia não abdica da procissão e aqui é que começam os problemas. Estranhamente ainda ninguém reparou que a indumentária que os santos envergam não é adequada para grandes passeatas neste altura do ano. Em dias de chuva e com o madeiro ensopado, o Senhor dos Passos tem que alombar, à vontade, com mais duas arrobas às costas (e nesta contabilidade não entra o peso dos pecados dos paroquianos). A gente só de o ver nestes apertos sente-se perdida. O pobre do S. João, que é achacado a problemas de garganta, apanha sempre uma laringite na procissão, pois as peles de camelo que traz a cingir-lhe o corpo, de pouco lhe valem. Isto sem falar dos vários cordeiros que já lhe morreram, com os resfriados resultantes da lã encharcada. Para o S. Sebastião, como se já não lhe bastasse andar com o corpo cravejado de setas, o contacto com o ar contaminado do exterior da igreja provoca-lhe sempre infeções e complicações bacterianas nas chagas mais expostas. O próprio padroeiro não escapa a estas calamidades. Embora a túnica comprida o proteja das aragens mais frias, nos dias de chuva fica alagado até aos ossos. Para além de lhe agravar os problemas reumáticos próprios da idade já avançada, secar a túnica no corpo tem-lhe custado alguns dissabores mais graves. De uma vez, se não é a intercessão do seu irmão Pedro, bem que tinha lerpado com uma broncopneumonia e com um cáustico que lhe rebentara no peito. Esteve por um fio!


Por isso, na corte celestial, já ninguém nutre grande simpatia pelo velho Stº André. E nem mesmo entre as criaturas do mundo terreno. Tolhidos em casa pelo frio e pela chuva, só os mais afoitos ousam deslocar-se à igreja, seja para assistir à parte profana da festa (o cartaz também não costuma ser muito convidativo), seja para participar nas cerimónias religiosas. Por isso, os paroquianos procuram esgueirar-se às suas responsabilidades contributivas para a festa. Nos peditórios, os nós dos dedos dos festeiros batem com frequência em portas mudas, de casas momentaneamente desabitadas. E quando aparece alguém com a mísera nota de 5€ estendida na mão:
- Então, não pode dar mais um bocadinho?
- Tende paciência, a vida está ruim e a festa é pequena e se calhar até vai chover. Nem sei para que andais com isso…é o mesmo que botar o dinheiro fora!
- Àgora! Não diga isso que o santo até a pode castigar!...
Com o objetivo de aumentar as receitas, já houve quem sugerisse a abertura do bar de Stº André, revertendo as receitas para a festa. Mas esta ideia foi prontamente desaconselhada pela Senhora dos Remédios que, como se sabe, aos sábados e domingos, tem honras de bar aberto – e sem consumo mínimo obrigatório. Consta que o principal motivo invocado pela santa é a grafonola do bar que toca de manhã à noite sem parar. Para além de complicações auditivas (que a tem levado ao consultório de um reputado especialista dos ouvidos da Maia), diz-se que a passagem até à exaustão do José Malhoa, está a causar-lhe enjoos e quadros depressivos. Se um gira-discos a tocar desenfreadamente já lhe causa tantos transtornos, imaginem o que seria com dois! Porém, em surdina, diz-se que a Senhora o que não quer é perder receitas com mais concorrência…

Não valendo a pena alongarmo-nos nestas quezílias celestiais, fica claro que por míngua de fé dos paroquianos e por falta de previdência divina na marcação dos festejos do santo e no próprio acautelamento das condições atmosféricas, a festa de Stº André fica muito aquém do que seria desejado para um padroeiro desta envergadura. Mas, afinal, quem foi o santo que a nossa terra escolheu para patrono?

Stº André foi um dos apóstolos de Jesus, surgindo várias referências à sua existência nos quatro evangelhos canónicos e em outros documentos. Assim, de acordo com o novo testamento, André é descrito como sendo irmão de Pedro. Ambos eram pescadores no mar da Galileia e as escrituras referem que foram os primeiros discípulos a seguir Jesus. Em Mateus (4-18) e em Marcos (1-16-18) é referido que Jesus encontrou André e Pedro a lançar as redes ao mar, tendo-lhes dito para deixarem o seu trabalho e para o seguirem, o que eles fizeram de imediato com o objetivo de se tornarem “pescadores de homens”. A narrativa do apóstolo S. João é diferente, mas mostra que André foi também um dos primeiros discípulos de Cristo. Segundo este evangelho, André era um seguidor de João Baptista (João, 1-35) que, mal viu Jesus nas margens do Jordão onde batizava, anunciou a chegada do “cordeiro de Deus”. Depois de escutar as palavras de Jesus, André seguiu-o de imediato (João, 1-40), tendo sido ele que levou mais tarde o seu irmão Pedro à presença do Senhor (João, 1-42).
Por se aferir que era irmão de Pedro, pode concluir-se que André era filho de João (João, 1-42) e que ambos eram naturais da cidade de Betsaida (João, 1-44). A descrição de Marcos (1, 21-29) parece indicar que André em conjunto com outros discípulos, partilharam a mesma casa em Cafarnaúm, nos primeiros dias da vida pública de Jesus.
Depois ao longo dos textos, as referências a Stº André diluem-se e surgem mais pontualmente, como no milagre da multiplicação dos pães (João, 6-7) ou no prenúncio feito por Jesus no Monte das Oliveiras sobre a destruição do templo de Jerusalém (Marcos, 13-3). Contudo, no livro dos Atos dos Apóstolos há apenas uma referência a Stº André (Atos, 1-13).
Diversos documentos da Antiguidade relatam que a missão de evangelização de Stº André se desenvolveu em várias regiões da Europa oriental, nomeadamente na Roménia, Ucrânia e Rússia. Não se conhecendo com rigor a data da sua morte como sucedeu com seu irmão Pedro que foi executado no ano 64, sabe-se que Stº André foi crucificado em Patras (atual Grécia), perto do mar Negro, onde trabalhava entre os scitianos. A tradição refere que Stº André foi executado numa cruz em forma de X a pedido do próprio mártir, por não se sentir digno de morrer numa cruz idêntica à de Cristo (a cruz latina em forma de T). A partir de então a cruz em forma de X passou a ficar conhecida como “cruz de Stº André”, a qual figura em muitas bandeiras e brasões de países/cidades que têm este apóstolo por padroeiro (como é o caso do brasão da nossa freguesia). O que não deixa de ser curioso é que o sinal X foi historicamente considerado pela igreja como um símbolo herético, pois representa a união dos símbolos masculinos (^) e feminino (v). O X foi, portanto, um símbolo associado à união carnal e ao pecado e ainda hoje a tradição perdura, uma vez que o X continua s ser utilizado como indicativo de erro, de incorreto. Não deixa, pois, de ser curioso que o brasão da nossa freguesia ostente um símbolo considerado luxurioso e herético pela igreja.
Na cidade de Patras, onde Stº André morreu, foi erigida aquela que é a maior igreja da Grécia. A igreja de Stº André de Patras levou 66 anos a construir e foi inaugurada em 1974. Nesta igreja estão guardadas parte das relíquias do apóstolo, que foram enviadas da Basílica de S. Pedro, por ordem do Papa Paulo VI. Estas relíquias, compostas por parte do crânio e dos dedos do apóstolo e por pedaços da cruz, haviam sido levadas de Patras para Constantinopla a mando do imperador romano Constantino II no ano de 357, onde foram depositadas na Igreja dos Santos Apóstolos. Mais tarde, em 1461, as relíquias foram doadas pelas autoridades do império bizantino ao Papa Pio II, que as colocou na Basílica de S. Pedro, onde permaneceram até 1964, quando o Papa Paulo VI ordenou que fossem devolvidas à proveniência. Em diversos outros países, como Itália e Polónia, estão localizados outros relicários associados a Stº André.
Apesar de não se conhecer com rigor a data de nascimento nem a idade que Stº André tinha quando se tornou apóstolo de Jesus, os artistas sempre representaram o apóstolo como um dos mais velhos dos doze. No famoso mural que retrata a última ceia pintado por Leonardo da Vinci, André é um homem já calvo e com longas barbas brancas. Esta interpretação é extensiva a muitas outras pinturas e estátuas do apóstolo, como a estátua existente na Basílica de S. Pedro ou o busto da igreja de Patras. Neste último, Stº André é representado com um livro e um peixe (alusão à sua antiga profissão e ao seu papel de evangelizador) e com a cruz em X, símbolo do seu martírio.




Busto de Santo André no relicário da Igreja de Patras


Santo André na última ceia de Leonardo (figura no extremo esquerdo)


Pormenor do Santo André de Palme