quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Petiscos de passarinho

    Quando ando de carro, tenho o mau hábito de ouvir notícias. Num destes dias, o jornalista, depois de noticiar todas as desgraças ocorridas durante o dia, deu uma notícia que deveras me intrigou. A pretexto das dificuldades económicas que muitas famílias estão a sentir, há um crescente número de pessoas que se dedicam à captura de passarinhos que, depois, são vendidos como aves de gaiola ou são abatidos para serem servidos como petiscos em reputadas casas de pasto. E foi especialmente este último ponto que me fez arrebitar a orelha. Será possível pensei? Provavelmente estão a referir-se a pombos-bravos ou a rolas e dizem que estas aves são “passarinhos”… bah estes jornalistas são mesmo sensacionalistas! 
    Ainda matutava eu no caso quando é colocado no ar um elemento da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves a lamentar-se que esta atividade decorre impunemente debaixo das barbas das autoridades e que parece ter cada vez mais adeptos, como o comprova o crescente número de aves à venda na Internet. Depois de questionado pelo jornalista sobre as aves mais afetadas por esta prática ilícita, o ambientalista deu os exemplos dos piscos, dos chapins, das toutinegras, dos verdelhões e das alvéolas. Bom, afinal, estamos mesmo a falar de passarinhos, concedi eu. A notícia terminou com o ambientalista a dizer que, se nada for feito para travar esta atividade, pelo menos em algumas regiões do país, a presença de certas espécies de aves poderá ser seriamente afetada. Mas então andam a caçar pássaros silvestres para os venderem na Internet, em feiras e em restaurantes? 
     Ainda com alguma incredulidade, entrei num dos mais conhecidos sites de leilões (OLX) e comecei a pesquisar. Os resultados deixaram-me de boca aberta: o site está pejado de pássaros e de outras aves silvestres, cuja captura é proibida. O mais comum, o simpático pisco-de-peito ruivo, está à venda pela módica quantia de 10€, mais ou menos o preço a que se compra uma rechonchuda galinha na feira de Barcelos. Mas se o caro leitor quiser adquirir o mais raro e esquivo pisco-de-peito azul já terá de desembolsar 50€. Só de piscos havia 19 anúncios, correspondentes a outros tantos vendedores. Chapins (frequentemente conhecidos por papa-abelhas na nossa terra) havia também perto de duas dezenas de vendedores, que ofereciam o chapim real, o chapim de cabeça azul e o chapim rabilongo. A escolher e a 10€ a unidade. Por este preço encontrei ainda as toutinegras, o papa-amoras, a felosa das figueiras, os tentilhões e os chamarizes (“cerejias” em Palme). Por 15€ é possível comprar verdelhões e chascos. Neste último caso ainda me ocorreu se o vendedor seria de Aldreu, mas não…(já agora cucos de Palme também não constavam da lista…). Num patamar acima (20€) deparei-me com as graciosas alvéolas brancas e cinzentas (mais conhecidas aqui por Palme por levandiscas) e os vistosos pintassilgos. A lista é quase infindável e engloba até pardais (a 15 Euritos cada) e aves de maior porte, como gaios, pegas, pica-paus, melros, corvos, etc., etc. 
     Além das aves, é possível comprar uma parafernália de armadilhas, pescoceiras, gaiolas e diversas bugigangas para capturar e alimentar as pobres aves. Tudo escarrapachado na Internet e à distância de um clique. Como é possível existir este comércio ilegal de aves em Portugal? E como é possível as autoridades aplicarem coimas por dá cá aquela palha aos restaurantes (por exemplo por utilizarem utensílios de madeira na cozinha) e nada fazerem contra as casas que servem petiscos à base de pássaros fritos? Os menos escrupulosos poderão argumentar: não comes frango assado? Sim, como. Não gostas de codornizes? Já comi e não são más. Pois os pássaros é a mesma coisa, mas em ponto pequeno! 
     Aqui discordo, não se trata de uma questão de escala, mas do facto destas aves terem um estatuto próprio de defesa. É por isso que a sua captura e comercialização são ilegais. E depois pergunto: há necessidade de comer estas minúsculas aves? Creio que não. Lembro-me da minha avó contar que, na sua juventude, quando uma sardinha era dividida por duas e três pessoas e se mourejava de manhã à noite (isso sim eram tempos duros!), alguns palmenses dedicavam-se à captura de pássaros para consumo próprio. A técnica consistia em cercar as medas de palha com redes durante a noite, para assim apanhar os pardais que ali pernoitavam. Mas isto foi em tempos de fome e de miséria extrema. Hoje comem-se pássaros não por necessidade, mas por caprichos da gula e por uma insaciável vontade de experimentar coisas novas. Por esta ordem de ideias, por que não ouriço-cacheiro de escabeche? Ou lombinhos de doninha assados no forno? Ou ainda coxinhas de toupeira de fricassé? E por que não uma caldeirada de salamandras e tritões? A imaginação é o limite. 
     Além do mais, estas aves desempenham um importante papel nos ecossistemas. Muitas das que se encontram à venda na Internet e nos pires de alguns restaurantes são insetívoras, alimentando-se de larvas, moscas, piolhos, formigas, etc., sendo auxiliares preciosos dos agricultores e dos jardineiros no combate de diversas pragas. Outras são granívoras, alimentam-se prioritariamente de sementes (verdelhões, pintarroxos, tentilhões, etc.), mas talvez com exceção do pardal, não causam estragos nas culturas. E há sempre uma altura, nomeadamente durante a criação, que se alimentam de insetos. Algumas como as felosas debicam a fruta, como dióspiros, figos  e morangos, mas sejamos francos, sobra sempre e deixa-se estragar tanta coisa que os prejuízos causados por estas pequenas aves são insignificantes. Portanto e a meu ver não há razões objetivas que sustentem esta prática de dizimar as aves para contentamento do estômago.
     Aqui por Palme não consta que haja comerciantes de aves silvestres com este nível de negócio, nem conheço restaurantes aqui pelas redondezas que tenham fritadas de pisco na sua ementa. Mas não falta por aí quem tenha destas aves engaioladas, nomeadamente melros, gaios, corvos, pegas e até aves de rapina, como gaviões. Esta é uma prática mais generalizada que resulta do fascínio que a beleza natural e o canto das aves sempre causaram. O que não quer dizer que ter uma levandisca ou um pisco encarcerado numa gaiola seja menos ilícito do que apresentá-los numa marinada de tomate, cebola e malagueta. Ambas as atividades são interditas. 
    Apesar disso, Palme é uma terra com uma razoável avifauna, tendo habitats apropriados para várias espécies: desde as áreas florestais mais densas, aos terrenos agrícolas abertos, incluindo as zonas húmidas do fundo da agra e as margens dos ribeiros. Como o post já vai longo, fica aqui a promessa de, em breve, regressar ao assunto das aves mais comuns em Palme. A seguir, para aguçar o apetite, deixo-vos algumas imagens sobre o tema que aqui trouxe. Qual é que a preferem: a dos pássaros estorricados ou as dos pássaros em liberdade? Eu já escolhi. Não é preciso revelar a minha opção, pois não?!


Piscos fritos (estorricados?) com batatas fritas


Pisco feliz da vida em Palme