quarta-feira, 4 de abril de 2012

O grande incêndio de Palme

O dia 28 de Março de 2012 vai ficar na história de Palme como um dia fatídico. À semelhança do que aconteceu em 5 de Junho de 2006 e em 6 de Setembro de 1995, a floresta de Palme foi reduzida a cinzas e a troncos carbonizados. Mas, ao contrário dos dois últimos grandes incêndios, desta vez o fogo propagou-se descontroladamente e sem que ninguém o detivesse por áreas que nunca tinham sido atingidas: Sobreiros, Goldrez, Figueiró e Balança. Uma verdadeira catástrofe ambiental e económica, num período que tem sido tão fértil em desgraças, más notícias e inquietações.


Ao longo dos últimos seis anos, o monte foi-se transformando numa bomba relógio pronta a explodir, bastando para tal acender-lhe o rastilho. E os pirómanos, como bons conhecedores do ofício, são pacientes e sabem esperar pela ocasião certa para que não haja lugares a falhas. Por isso, os incêndios nesta zona atingem sempre grandes dimensões e são altamente destrutivos. E as condições estavam uma vez mais reunidas, não tendo sido necessário esperar pela abertura da época oficial dos incêndios. O Outono foi uma espécie de prolongamento do Verão e o Inverno até tinha passado despercebido, não fosse o frio que se fez sentir durante algumas semanas. Chuva nem vê-la, de modo que não havia humidade no solo. As temperaturas, apesar de não serem invulgares para o mês de Março, favoreceram a expansão do fogo, que teve na baixa humidade do ar outro aliado de peso. Nestas condições, só faltava esperar que soprasse uma brisa do Norte ou do Nascente para tanger as labaredas pelo monte fora, como de facto uma vez mais sucedeu. Para além das condições atmosféricas, os pirómanos têm que ser bons conhecedores das condições da vegetação, o que também se parece confirmar. O monte estava repleto de matéria combustível, uma vegetação densa, praticamente impenetrável, que cresceu espontaneamente desde 2006. Nalgumas zonas, os matos, os tojos, as giestas e os codessos atingiam mais de 2m de altura; os eucaliptos medravam pelo monte fora como se estivessem em alfobres de um descuidado silvicultor. Nestas condições só um milagre poderia evitar a catástrofe, mas a mão divina não deteve os intentos do pirómano… e o pior aconteceu.


Já há alguns dias que o fogo farejava o monte de Palme. O cheiro a queimado andava no ar, houve alguns ensaios preparatórios nas redondezas, como o fogo de Vila Cova e, no fim de semana anterior, deram-se início às hostilidades de maior envergadura, com o fogo de Quintiães. Na terça-feira, o fogo lavrava já em Carapeços e daí ao monte de Fragoso e de Palme foi um ápice. Já com o sinistro invasor às portas de Palme, o sinal de alarme partiu do alto da torre da Igreja, de onde, num acto de tragicomédia, o sino dobrou a finados em plena madrugada. Estremunhadas e confundidas, as pessoas que despertavam para o pesadelo, a princípio, interrogavam-se sobre a identidade da alma que trespassara, certamente alguém muito importante para ser assinalado em plena madrugada. Porém, o clarão que iluminava o campo de batalha e o zunido devorador do fogo deixaram claro que o toque do sino era para mobilizar a população contra o inimigo que se aproximava. E na verdade, muitos populares, com os meios que tinha ao seu alcance, acorreram à frente de combate, determinados a derrotar o fogo. Mas o sucesso da operação estava comprometido, quer pela desproporção das forças para fazer face a uma frente de fogo tão extensa, quer pelo facto do inimigo ter actuado a coberto da noite, dificultando ainda mais as acções de combate. Já à luz do dia e ao invés do que sucedeu em incêndios anteriores, desta vez verificou-se um menor envolvimento das pessoas no combate ao fogo. Na Balança, por exemplo, estavam magotes de pessoas, mas poucas eram aquelas que tentavam apagar as chamas. As pessoas como que foram assistir a um espectáculo de fogo de artificio gratuito, muitos estavam em amena cavaqueira, outros vestiam a pele de jornalistas, relatando os acontecimentos pelo microfone do telemóvel, outros escolhiam o melhor ângulo para a fotografia, alguns esboçavam mesmo sorrisos de satisfação por a bouça de fulano ter ardido por completo e por a de sicrano estar na rota do fogo. Os próprios bombeiros tinham instruções para deixar arder a mata, limitando-se a sua acção a proteger os edifícios. Verdadeira ou falsa, a notícia circulou como tal. Com efeito, os bombeiros foram pouco vistos, sobretudo no período da madrugada e da manhã. Com estas condicionantes naturais e humanas, o resultado está à vista: em pouco mais de 12 horas, o fogo consumiu a maior parte da floresta da freguesia e alastrou-se sem dó nem piedade pelas freguesias vizinhas, deixando um rasto de destruição atrás de si.


Como é do conhecimento de todos, o monte de Palme arde ciclicamente e em intervalos de tempo cada vez mais curtos. Há umas décadas atrás, só as áreas mais distantes e de difícil acesso eram atingidas, mas os fogos não alcançavam grandes proporções. Nessa altura, os matos eram cortados com muita regularidade, destinando-se a fazer a cama para o gado, enquanto a lenha era também muito mais procurada e aproveitada para combustível. Agora poucos são aqueles que têm gado e os poucos criadores não utilizam os matos nas vacarias. Quanto à lenha, aproveitam-se os toros grossos, mas as ramagens deixam-se ficar nos terrenos. Praticamente ninguém faz desbastes, mondas e limpezas na floresta. O monte está transformado numa grande balbúrdia, que reflecte o enorme desinteresse que as pessoas têm em preservar a floresta. As pessoas só se lembram da floresta por conveniência. Quando a freguesia se insurgiu (e bem) contra a localização do aterro sanitário, um dos grandes argumentos utilizados foi o de que iria destruir uma grande mancha florestal. Não faltaram panos pretos, com mensagens a favor da floresta e de repúdio do aterro. Mas o que é que tem sido feito contra esta ameaça bem mais destrutiva e letal e que repetidamente ataca a nossa floresta? Absolutamente nada.


É evidente que este estado de coisas também se deve à ineficiência das políticas e dos governantes. Na verdade, o desordenamento da floresta não é um problema exclusivo de Palme, mas sim um problema extensivo a todo o país, principalmente à região Norte. O principal problema reside no elevado fraccionamento das propriedades, o monte é propriedade de centenas de pessoas, muitos terrenos nem se sabe de quem são e a maior parte dos proprietários não tem o mínimo interesse em rentabilizar a floresta. Nestas condições é extraordinariamente difícil fazer uma gestão adequada da floresta e protegê-la do fogo. Mas o mais caricato é que estão em vigor diversos planos que identificam os problemas e que apontam soluções para a sua resolução. Por exemplo, a floresta de Palme está integrada no Plano Regional de Ordenamento Florestal do Baixo Minho (
http://www.afn.min-agricultura.pt/portal/gestao-florestal/profs/prof-do-baixo-minho). Uma das propostas deste Plano é precisamente a criação de uma Zona de Intervenção Florestal (ZIF) em Palme. Uma ZIF corresponde a uma área contínua e delimitada, constituída maioritariamente por espaços florestais, submetida a um plano de gestão florestal e a um plano de defesa da floresta e gerida por uma única entidade, com uma determinada área, número de proprietários e de prédios rústicos. O problema é que muitos proprietários, por arcaísmo mental, rejeitam liminarmente participar em modelos de gestão comum da floresta, preferindo deixá-la ao abandono e sujeita à ira dos pirómanos e aos interesses daqueles que lucram com a sua destruição. Ao desinteresse dos privados junta-se o alheamento das entidades públicas, que não zelam pelo cumprimento das directrizes dos respectivos planos. Por exemplo, para as áreas onde está prevista a criação de ZIF’s, os proprietários que revelassem resistências deveriam sofrer algum tipo de punição (aumento da contribuição predial, por exemplo) como forma de os pressionar a aderir. O problema é que uma medida deste tipo implicava a existência de um cadastro actualizado e o projecto que estava em curso de criar um sistema nacional de cadastro parece estar suspenso por falta de meios. Portanto, a floresta está mergulhada num grande imbróglio, que será difícil de resolver enquanto os privados e as entidades públicas continuarem a olhar para ela como uma fonte de problemas e não como uma fonte de proveitos.

Neste quadro, não se adivinham melhorias significativas para a floresta de Palme nos próximos tempos. O mais certo é que depois de vender ao desbarato a madeira, os proprietários se alheiem ainda mais da floresta. E assim, o mais provável é que lá para 2015 ou 2016 a tragédia volte a repetir-se, com o fogo a devorar de novo a vegetação que entretanto for espontaneamente reposta. Para tristeza de muitos, mas para o contentamento de alguns…



Aspecto sinistro da floresta recém queimada em Palme



Rochas, cinzas e troncos carbonizados: o espólio deixado pelo fogo

Paisagem lunar em Palme



Cepos em combustão lembrando vulcões em miniatura




Um sobrevivente do holocausto