quinta-feira, 31 de maio de 2018

Futebol, o ópio do povo

- Para ti, qual é a coisa mais importante da vida?
- Para mim é o futebol!...
Esta resposta ouvia-a eu há tempos da boca de um palmense a meio de uma conversa mais ou menos banal e filosófica sobre a vida. O futebol! Na altura não dei grande importância, mas depois fiquei a matutar no assunto. Na verdade, liga-se a televisão e raro é o dia em que não esteja a dar um jogo de futebol, na rádio os programas de comentário e debate sucedem-se, nas redes sociais um dos temas mais abordados e usadas para as pessoas se insultarem é o futebol, os jornais desportivos vivem das querelas da bola, as revistas cor-de-rosa das férias e dos luxos em que os jogadores e dirigentes vivem, etc., etc. Como foi possível chegar a este ponto? Por que razão é o futebol tão importante na vida das pessoas?

Em meados da década de 1990, o futebol não tinha a importância mediática e social que hoje detém. Os próprios desafios de futebol passavam no segundo canal, que já na altura era um canal com conteúdos mais alternativos e menos preocupado com audiências. É claro que nesse tempo já havia adeptos inveterados, que andavam de transístor colado ao ouvido, a escutarem os relatos dos domingos à tarde, quando normalmente aconteciam todos os jogos. A partir de meados da década de 1990, as coisas principiaram a mudar. O futebol foi progressivamente conquistando mais espaço na comunicação social, surgiram os programas de debate com comentadores residentes, apareceram os canais no cabo com o exclusivo do direto do futebol numa lógica de que “se queres ver, paga”, e mais recentemente, os principais clubes criaram os próprios canais, até com direitos de transmissão dos jogos em casa. Há jogos da liga às sextas, sábados, domingos e segundas; às terças, quartas e quintas há competições europeias. Depois há os jogos das taças e da seleção isto já para não falar dos campeonatos dos outros países. Há jogos de manhã, à tarde e à noite e, nas raras ocasiões em que não há desafios em direto, repetem-se os da véspera. Em qualquer café, independentemente do dia ou da hora, o retângulo relvado com 25 indivíduos a correr atrás de uma bola está a passar na televisão. Na deprimente época de defeso, para além do tema das transferências, passam-se jogos a feijões, amigáveis, jogos de preparação, partidas com antigas estrelas, jogos de escalões mais jovens, futebol feminino, futsal, futebol de praia, matraquilhos que seja, mas a bola tem que estar sempre a rolar. A seguir aos jogos, entram em cena os programas de comentário e análise às partidas com personagens normalmente associadas aos três principais clubes. O aperitivo destes debates, moderados por jornalistas pouco isentos, é a desonestidade intelectual dos argumentos utilizados (três pessoas tem três opiniões diferentes do mesmo lance), as picardias a roçar o insulto com que os comentadores se tratam (“você não me chama animal, ouviu!)”, e a forma primária como os árbitros são cilindrados. Estes programas são uma espécie de big brother anedótico do futebol, onde todos os tipos de dislates são permitidos. Isto seria cómico se alguns destes comentadores (ou “paineleiros” como já foram apelidados) não fossem pessoas que exercem cargos políticos, que foram antigos assessores de ministros, figuras públicas ou simplesmente, aspirantes a alguma coisa na vida que mais não sabem fazer que mandar umas bordoadas nas equipas adversárias e nos árbitros. Então é legítimo perguntar: se estes cavalheiros são tão erráticos no comentário futebolístico, que credibilidade é que terão no desempenho das suas profissões? A resposta está à vista. Há quem siga religiosamente estes programas, quem conheça os nomes de todos os jogadores e quem saiba os jogos e classificações de todas as ligas, incluindo de campeonatos tão destacados como o Albanês. Será o futebol merecedor de tanta importância e atenção?

Na órbita do futebol (nacional e internacional) gravitam todos os tipos de crimes, delitos e delinquentes. Ao nível dos dirigentes, corrupção, tráfico de influências, fuga aos impostos, branqueamento de capitais, etc. é o pão nosso de cada dia. Os cargos dirigentes, além do atrativo da remuneração, são disputados por uma outra razão: poder. E é pelo seu poder económico e social que o futebol se tornou tão importante. Por isso, é ao nível do dirigismo que estão associados os maiores crimes. Imediatamente a seguir, a operar na penumbra, está uma classe de sanguessugas que dá pelo nome de empresários, que manobram nos bastidores, que exercem influências e que cobram comissões chorudas das transferências dos jogadores sem deixar rasto. Depois há os investidores que enterram milhões e milhões em clubes falidos. Alguém no seu perfeito juízo investiria dezenas ou centenas de milhões de Euros em empresas falidas? Claro que não! Então por que o fazem no futebol? Para simplesmente lavar dinheiro, proveniente do crime (tráfico de droga, gestão danosa de empresas, de offshores, da máfia, etc.). Mesmo que se percam alguns milhões com os investimentos no futebol, os clubes são uma boa lavandaria. É sabido, por exemplo, que o apogeu dos clubes galegos em meados da década de 1990 esteve associado a dinheiro do narcotráfico proveniente da América do Sul. Depois, o que os jogadores e treinadores ganham é obsceno para qualquer cidadão comum. Muitos podem-se esfalfar a vida toda a trabalhar, que não ganham o que alguns jogadores auferem num único mês e que levam uma vida principesca, cheia de mordomias e de luxos. E porquê? Porque sabem dar uns pontapés numa bola, ainda que mal saibam falar ou escrever. E depois há as claques de futebol, que mais não são que hordas de caceteiros e delinquentes que usam o futebol como meio para atingir outros fins, nomeadamente para semear a violência, o ódio, o racismo, o neo-nazismo, entre outros fins hediondos. Em Portugal, estas claques já foram responsáveis por assassinatos em estádios, por destruições diversas (viaturas, estações de serviço, estádios), por agressões violentas a agentes de autoridade, por atropelamentos fatais e até, como sucedeu recentemente, por agressões a elementos da própria equipa.

Os adeptos e a justiça (os próprios agentes judiciários também estão envolvidos) olham com complacência para o atoleiro de vícios e de crimes em que o futebol está mergulhado. E assobiam para o ar. A posição da justiça ainda se percebe, porque come da mesma gamela, agora os adeptos é mais difícil de entender. Por mais claros que sejam os indícios criminais, os adeptos, numa fidelidade canina aos dirigentes e comentadores, falam de cabalas, de calúnias e de artimanhas engendradas pelos adversários para descredibilizar o próprio clube. E cerram fileiras. O futebol debate-se acaloradamente e de forma fanática, mesmo com a consciência de que os clubes são pântanos de interesses nebulosos e de crimes. O futebol transformou-se, pois, numa religião fundamentalista. Numa época em que a política há muito caiu em descrédito (como o comprovam as elevadas taxa de abstenção) e que a igreja perdeu a maior parte dos praticantes e atravessa uma crise de fé, o futebol emerge como a última das religiões do povo. Porém, o culto religioso alterou-se. A religião monoteísta do deus único deu lugar a uma religião politeísta, composta por vários deuses (dirigentes, treinador e jogadores) com graus de importância diferenciada à semelhança da mitologia grega e romana da Antiguidade. A igreja, lugar frio, escuro e húmido, foi trocado pelo confortável sofá em frente ao led ou pela mesa repleta de minis no café em frente ao ecrã gigante. O deus não está mais num altar distante, mas os deuses jogam todos os fins-de-semana no estádio e entram pela nossa casa dentro sem pedir licença. O deus que ninguém consegue ver no céu foi substituído por deuses que podem ser vistos ao vivo e a cores nos estádios. Há recintos conhecidos por “catedral” e dirigentes apelidados de “papa”. Os paralelismos são tantos que não restam grandes dúvidas que o futebol é a nova religião do povo. No século XIX, uma das frases mais célebres de Karl Marx, um dos principais teóricos do comunismo, foi “a religião é o ópio do povo”. Nos tempos que correm não parecem restar grandes dúvidas que o mais correto será dizer: o futebol é ópio do povo.