sexta-feira, 30 de setembro de 2016

As gamelas de Palme

No post de maio deste ano, a respeito do arco na festa das Cruzes, que se encontra decorado com gamelas, escreveu-se que Palme não era a única freguesia com tradições neste tipo de artesanato. Nesse post prometeu-se abordar o tema das gamelas mais tarde. Pois bem, chegou o momento. Por isso, no tópico deste mês trago aqui as gamelas de madeira e convido os leitores a deterem-se um pouco nas linhas que se seguem.

As gamelas de madeira são o ex-libris do artesanato de Palme. Estas peças escavacadas manualmente a partir de troncos de pinho são um dos mais importantes emblemas da freguesia. As gamelas surgem em exposições de artesanato da terra, são frequentemente oferecidas a organizações e personalidades de fora e dão inclusive o nome ao rancho folclórico (as “Gamelinhas de Palme”). É caso para dizer que as gamelas estão para Palme como o galo está para Barcelos! O que muita gente não sabe é que a produção de gamelas é uma atividade ancestral, que remonta pelo menos à época castreja, período anterior à chegada dos romanos ao norte de Portugal. As comunidades castrejas eram aquelas que viviam, por exemplo, no monte de S. Lourenço, naquelas habitações circulares que ainda hoje se podem apreciar, ou no monte do Cresto, onde esses vestígios estão mais apagados. O arqueólogo Carlos B. Almeida, que dedicou vasto e meritório trabalho ao vale do Neiva, refere que nestes povoados castrejos, a profissão de gameleiro era muito comum. Nessa altura, as gamelas eram produzidas a partir de amieiro ou de choupo, devido à leveza e à facilidade em trabalhar estas madeiras. Estas gamelas, que estiveram na origem da escudela medieval, eram produzidas sob variadas dimensões, sendo utilizadas numa grande diversidade de utilizações, excetuando o facto de não poderem ser usadas sobre o fogo. Apesar de faltarem registos arqueológicos nestes povoados castrejos, devido ao facto da madeira ser facilmente degradável, a presença destes artefactos na região do vale do Neiva pode ser confirmada por duas vias: a documental e a etnográfica. Há documentos históricos que comprovam que as comunidades castrejas já se dedicavam à produção de gamelas de madeira. Por exemplo, Estrabão, historiador e geógrafo da Antiguidade, refere que estes povos “usam vasos lavrados em madeira, como os keltoi” (Almeida, 2006:81). A via etnográfica é aquela que chegou aos nossos dias por via do artesanato e das tradições que passaram de geração em geração. Não esqueçamos que estávamos perante uma comunidade organizada e hierarquizada segundo o sistema gentílico, baseada nos laços de sangue e na passagem de testemunhos de pais para filhos. Regime esse que se prolongou pela Idade Média e ainda se fazia sentir até há pouco tempo. Etnograficamente, a produção de gamelas atravessou muitas gerações e esteve patente em Vila Chã, Forjães e Palme, através de uma série de famílias que se dedicavam ao fabrico destes recipientes até há pouco tempo (Almeida, 2006). Por aqui se conclui que a produção de gamelas não é uma atividade exclusiva de Palme. Pelo contrário, os gameleiros são uma profissão milenar, que esteve ligada às comunidades castrejas muito presentes no norte de Portugal. 

A referida via etnográfica está, felizmente, ainda hoje representada em Palme. A família Larú é aquela que mais tradição tem na produção das gamelas. Curiosamente, esta  família, pelo lado parental, provêm de Alvarães e não de Palme, o que demonstra uma vez mais que não era uma atividade exclusiva de Palme. O Sr. José Larú aprendeu com o seu avô a arte de fazer gamelas ainda em tenra idade e, a partir daí, não mais deixou de se dedicar a esta arte, que manteve até há escassos anos e que tem sucessor no seu filho Armando. Tradicionalmente, o processo de produção das gamelas iniciava-se com a seleção e corte de um pinheiro em toros de 3 m de comprimento. Cada um destes rolos era depois cortado de forma longitudinal, com recurso a um serrão (atualmente emprega-se uma motosserra para fazer este serviço de forma mais rápida e com menor esforço). Depois de cortado e com a face plana do rolo virada para cima, riscam-se as gamelas com a ajuda de um compasso, definindo-se aí o seu tamanho. De seguida e com a ajuda de um machado procede-se ao descasque dos rolos cortados e ao corte dos rolos para separar as gamelas desenhadas. Depois usam-se enxós para escavacar a madeira por fora e por dentro até as peças ficarem com a forma desejada da gamela. Por último, as peças são colocadas ao sol para secar. 

Atualmente, as gamelas são muito procuradas por motivos estéticos e decorativos, com o objetivo de acentuar o ambiente tradicional e rústico das cozinhas regionais. Mas ainda há muita gente que usa as gamelas de madeira. Para deitar a massa do pão antes de ir ao forno (utilização primordial das gamelas em Palme), para levedar a massa, para colocar alimentos, para fazer arranjos florais, etc. Mas, à semelhança do que sucedeu com outras atividades artesanais, como a cerâmica e a cestaria, a produção de gamelas viu-se ultrapassada pelos produtos de plástico que, para além de serem mais baratos, são mais fáceis de encontrar e alguns até são mais funcionais. Por isso, apesar dos esforços e dos alertas para manter vivas estas reminiscências do passado, o artesanato tem decaído e há cada vez menos pessoas a darem continuidade aos ofícios herdados dos pais e avós. O mundo rural está cada vez mais envelhecido, despovoado e descaracterizado, os mais novos procuram melhores rendimentos e a globalização está aí a nivelar e a uniformizar tudo, como uma grande rasa à escala planetária. O artesanato tem valor pelo que significa e pelo que tem de distintivo e de autêntico. Em Palme, algumas atividades estão condenadas, como a produção de cestos, porque o senhor Arlindo não tem seguidores. A produção de gamelas para já está assegurada. Oxalá que outros possam seguir as peugadas das gerações anteriores e manter viva esta tradição secular. Em Palme e nos arredores.

As gamelas de Palme




Produção das gamelas de Palme (família Sr. Larú)




Bibliografia
Almeida, C. (2006) “O castro de São Lourenço, Vila Chã (Esposende)”. In Actas do Seminário Final A Cultura Castrexa: Accións e estratexias para o seu aproveitamento socio-cultural, Xunta de Galicia, pp.67-93.

Jornal de Barcelos (2015), fascículo dedicada à freguesia de Palme.