segunda-feira, 31 de julho de 2017

Trovoadas: mitos e não só

No início deste mês de julho ouvi da boca de um septuagenário de Palme mais ou menos o seguinte:
- “Não me lembro de um ano com tanta trovoada como este! Não tem havido uma semana em que não tenha trovoado. Está mau para o vinho, que fica emborralhado e estraga-se”.

No início do mês, a questão das trovoadas esteve na ordem do dia, muito por causa do fatídico incêndio de Pedrógão, que ceifou mais de meia centena de vidas e que terá sido originado por uma trovoada seca. Desde então, sempre que se reuniram condições favoráveis à ocorrência de trovoadas, as pessoas temem a formação de incêndios devastadores. Mas isto não é inédito. Por exemplo, no verão de 2005, ano também ele de má memória para a floresta nacional, houve uma série de graves incêndios na região centro (na Chamusca) causados por trovoada seca, que originou vários focos de incêndio ao mesmo tempo. Para além dos incêndios, as trovoadas sempre causaram fobias, receios e temor. Ainda hoje há muita gente que tem fobia às trovoadas (astrofobia). 

À falta de explicações científicas, na Antiguidade acreditava-se que a trovoada era uma manifestação do desagrado dos deuses em relação aos atos praticados pelo homem. A fúria divina, com grandes estrondos, descarregava raios do céu que fulminavam os homens e incendiavam a terra. Para os gregos antigos, os raios eram lanças feitas por gigantes de um só olho e arremessadas por Zeus, o reio dos deuses. Na mitologia romana, era Júpiter o suspeito de descarregar sobre os homens essas lanças fulminantes de luz. Para os povos nórdicos, Thor era o deus dos trovões e dos raios. O som do trovão era provocado pelo movimento das rodas de sua carruagem e os raios podiam ser vistos quando Thor atirava o seu martelo. Inspirada na mitologia clássica, a Igreja foi também passando a crença de que a trovoada era Deus a ralhar e a castigar os homens pelos seus pecados. Lembro-me bem das pessoas mais idosas dizerem isso e até da catequista nos atemorizar com essa ideia. Para livrar as pessoas desse perigo e para afastar as trovoadas surgiram rezas específicas, como a oração a Santa Bárbara, protetora dos raios, tempestades e das tormentas em geral. Devido à falta de fé, há até um ditote popular que diz que as pessoas só se lembram da Santa Bárbara quando ouvem trovejar, ou seja, quando estão apertadas. Mas há outras tradições religiosas. Uma delas diz que as pinhas que se colocam junto à lareira na noite da consoada (para abrirem e se comerem os pinhões), são uma ótima proteção contra as trovoadas. Para tal basta acendê-las nos dias da trovoada, o seu fumo vai fazer afastar e dissipar a tempestade...Havia também umas pulseirinhas metálicas que protegiam as pessoas das trovoadas (e do reumático e da ciática), mas quando a esmola é grande, o santo desconfia, e as pessoas deixaram de acreditar nos poderes miraculosos destas braceletes, que caíram em desuso. Também não deixa de ser caricato que as torres das igrejas estejam protegidas por pára-raios. Há quem diga que isso é a prova de que os próprios crentes não têm confiança em Deus…ou será que os raios que tombam sobre as igrejas são um castigo divino pelo vasto rol de pecados cometidos pela Igreja ao longo dos tempos? Depois há crenças e saberes populares associados ao fenómeno das trovoadas, algumas com fundamento, outras nem tanto. Por exemplo, “Maio que não der trovoada, não dá coisa estimada”, numa clara alusão às frequentes trovoadas que ocorrem naquele mês.  Ou então “Trovoada da terra para o mar, toma os bois e vai lavrar”. Uma outra crença muito difundida é a de que a trovoada mata os embriões dos ovos no choco. Aqui parece haver algum fundamento científico relacionado com a eletricidade estática, que mata os embriões das aves. Por isso, algumas pessoas colocam pequenos pedaços de metal nos ninhos das galinhas para absorverem essa eletricidade e precaver a morte dos pintos.

Em termos científicos, uma trovoada consiste basicamente numa descarga elétrica. Em condições de grande instabilidade atmosférica, que resultam na formação de nuvens de grande desenvolvimento vertical (os cumulonimbos, que são nuvens que parecem autênticas montanhas, que podem atingir 15km de altura), as gotas de água são desintegradas: as menores, mais leves, são arrastadas por o topo da nuvem, onde inclusive podem gelar, originando granizo; as gotas maiores e mais pesadas ficam na base da nuvem. Ao mesmo tempo, as cargas elétricas positivas e negativas separam-se também: as cargas positivas sobem para o topo da nuvem; e as negativas ficam na sua base. Quando essa separação se desfaz devido à instabilidade, o resultado é um relâmpago, que corresponde à libertação de energia devida à diferença de carga entre as partículas. O raio é constituído por eletrões que viajam através do ar devido ao forte campo magnético que resulta da diferença entre a grande voltagem da nuvem e do solo. Crê-se que a energia libertada por um raio daria para alimentar as necessidades elétricas de uma cidade média durante uma noite inteira. Mas ainda não há uma forma efetiva de acumular essa energia.

O relâmpago pode ser inteiramente dentro da nuvem e outras vezes dirigido da nuvem à terra. O relâmpago propaga-se ao longo de um ou mais canais forquilhados ou em forma de raiz. Ao passar através do ar, o relâmpago dá origem a um grande calor. Em média, a temperatura de um raio é cinco vezes superior à da superfície do sol. Ou seja, pode atingir 25000ºC ou mais ainda! A expansão e a contração súbita do ar resultantes do relâmpago originam o trovão, que corresponde ao som gerado por essa passagem do raio. O som de partes diferentes do relâmpago não é escutado todo ao mesmo tempo e isto com os ecos (que resultam da orografia da superfície), cria o ribombar típico da trovoada. Como o som viaja a cerca de 300 metros por segundo, é possível determinar a que distância o raio caiu: basta para tal multiplicar os segundos decorridos entre o relâmpago e o estrondo do trovão. Os relâmpagos são atraídos por pontas agudas e metálicas. Foi o Benjamim Franklin que, no século XVIII, constatou isso mesmo quando levantou um papagaio-de-papel com pregos durante uma trovoada e constatou a ocorrência de faíscas numa chave que tinha amarrada ao cordel. Teve sorte, se a descarga fosse mais forte, teria morrido. Por isso, os edifícios mais altos, assim como as torres das igrejas, são protegidos por pára-raios, que conduzem as descargas elétricas em segurança até ao solo. As árvores altas e isoladas também atraem os raios, pelo que é perigoso as pessoas abrigarem-se debaixo delas durante uma tempestade. No entanto, há também a crença antiga de que algumas árvores e as suas folhas não atraem as trovoadas, como o loureiro. Por isso, os romanos usavam folhas de loureiro na cabeça. Assim estavam protegidos dos raios...

Atualmente há sistemas avançados de deteção das trovoadas e sites que disponibilizam informação sobre a intensidade das descargas e o local onde os raios caíram. Por exemplo, o IPMA disponibiliza informação sobre as descargas elétricas ocorridas em todo o território nacional para um período de até 24 horas. Foi através da informação disponibilizada por este sistema do IPMA que fiquei a saber que na manhã do dia 6 de julho (a tal semana em que falei com o septuagenário de Palme), dois raios caíram sobre Palme com uma intensidade forte: um na zona de Vilar e outro abaixo do Outeiro. Desde então, as trovoadas têm dado algumas tréguas. Mas as nuvens negras da tempestade pairam no firmamento político de Palme e prevêem-se muitos raios (e coriscos?), trovões e saraivadas para os próximos dois meses, agora que a pré-campanha eleitoral já anda aí e os candidatos e as listas se perfilam. Tal como nas aventuras de Asterix, não vão faltar por aí pessoas com receio que o céu lhes caia em cima da cabeça...valha-nos Santa Bárbara e as pinhas da consoada...

Local da queda de um raio na manhã de 6 de julho (Outeiro)
Fonte: IPMA.


Local da queda de um raio na manhã de 6 de julho (Vilar)
Fonte: IPMA.