segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A desfolhada

No calendário rural, setembro e outubro são meses de colheitas. A este respeito, li há pouco num site de um canal de TV regional que as desfolhadas são “um ritual tão antigo quanto a civilização mediterrânica”. O pseudo-jornalista que escreveu esta enormidade precisava de levar com uma espiga de milho na carola, pois parece ignorar que o milho foi trazido da América na época dos descobrimentos estando, portanto, longe de ser uma cultura tão antiga quanto a civilização mediterrânica.

A própria tradição das desfolhadas está em acentuado declínio. Mesmo nos meios rurais, como em Palme, já se fazem recriações das desfolhadas, para mostrar aos mais novos e lembrar aos mais velhos o que eram as desfolhadas: a ceifa manual do milho à foicinha, o transporte em carro de tração animal, a desfolhada à noite e, por fim, a colocação da palha nas medas, que iria alimentar o gado durante o inverno. Tudo isto começam a ser brumas do passado e contam-se pelos dedos de uma mão as pessoas que ainda cultivam o milho de acordo com este processo ancestral. O trabalho afetuoso e laborioso que era feito de forma manual, mecanizou-se e brutalizou-se. As máquinas irrompem pelos terrenos dentro e destroçam tudo numa barulheira infernal, reduzindo as canas, as folhas e as espigas a um farelo indistinto. Agora todo o trabalho se faz de uma forma fria, distante, apressada, sem que haja qualquer condescendência pelas pobres plantas, que levaram meses a transformar a terra em cereal. 

Já não há mãos calosas e ásperas a deceparem as canas, a carregá-las em braçadas para os carros e a acariciarem as espigas depois de lhes remover os folhos e as barbas. E também já não há a ânsia de encontrar as espigas vermelhas (milho-rei!) para distribuir beijos e uns beliscões pelas moçoilas. E menos ainda de ver os máscaras que apareciam de surpresa (quem será?) para assustar e depois alegrar as noites das desfolhadas. A magia e o encanto do trabalho foi-se perdendo ao longo do tempo. 

E entende-se porquê. A foicinha faz calos e derreia os rins. Caminhar sobre o milho cortado causa lanhos nos pés. Acarretar o milho à braçada corta a pele, faz irritações e borbulhaços. Desfolhar o milho esfola os dedos, suja e escana as unhas. A palha não tem utilidade nenhuma: os animais aburguesados não a querem, colocada numa pilha não arde. E o próprio milho para que serve? E o pessoal para fazer a desfolhada, onde está? A vida mudou muito (para melhor aparentemente), uma criança de hoje não faz ideia do que era a vida no campo há 30 anos. Como já dizia Camões, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades…