quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Miguel Torga - Contos da Montanha e Novos Contos da Montanha (1)

Miguel Torga foi um dos maiores escritores Portugueses do século XX. É autor de vários livros de contos, nomeadamente dos “Contos da Montanha” e dos “Novos Contos da Montanha”. A beleza literária dos contos de Torga é única: as suas palavras têm cheiro, paladar, sons, cores, entram-nos pelos sentidos dentro e regalam-nos até às entranhas. Estes dois livros foram escritos na já distante década de 1940 e retratam a difícil vida na região de Trás-os-Montes e do Douro (Montanha). 

Os contos passam-se em ambiente rural e descrevem a situação de pobreza, fome, miséria, e abandono em que se vivia nessa região. As personagens destes contos de Torga são, muitas vezes, pedintes, indigentes, órfãos, ladrões, cavadores, pastores, jornaleiros, pessoas ostracizadas pela sociedade do seu tempo. Numa das edições, Torga diz que estas personagens são almas penadas deste mundo. Nos contos de Torga, não há lugar ao relativo: tudo é absoluto. As personagens debatem-se com um dilema muitos simples: ou resistir (à doença, à miséria, aos atropelos da vida) ou sucumbir. E depois há o profano e o religioso que andam sempre de mãos dadas nesse caminho ziguezagueante para a morte e para a esperança de uma vida eterna. O padre, o sacristão, os mordomos e as festas são personagens e acontecimentos que marcam indelevelmente os contos de Torga. Nas relações titubeantes entre o profano e o religioso, as capelas e as ermidas no meio do monte foram o pretexto para Torga se inspirar em três contos: “O desamparo de São Frutuoso”, “Um roubo” e “Natal”, que para mim é o mais belo de todos. Hoje proponho uma viagem por estes três contos.

A primeira história envolve uma personagem tão indigente que mal se poderia considerar uma pessoa humana. No conto, Torga nem nome lhe dá! Foi criada sabe Deus como e vivia do triste ofício de pedir. Sem eira nem beira, dormia no redil das ovelhas de qualquer um ou no forno do povo, onde se gelava como ao relento. Num inverno em que o céu se desfazia em água e que a fome apertava ainda mais, o remédio foi ir pedir para terras mais distantes. E quando regressava duma dessas peregrinações caridosas, abrigou-se de um chuveiro mais forte na capela de São Frutuoso. E foi aí que reparou que o santo estava ensopado. O telhado da capela estava roto e a água caía a prumo sobre a cabeça descoberta do desamparado santo. Com tanta água, as suas vestes estavam a perder a cor e o borrão de tinta furta-cores alastrava-se pelo santo abaixo e pela toalha do altar. Um nojo! Apesar de não dever favores especiais ao santo, que nunca a atendeu nas suas preces, ficou condoída com aquele desamparo. E falou com quem de direito para resolver o problema. O padre mijou sentenças e disse que não havia nada que andasse mais ao jeito de Deus que o tempo. O mordomo assobiou para o ar, o santo que se governasse. E face ao alheamento de todos, resolveu tomar uma atitude. Teceu uma caroça de junco e colocou-a sobre São Frutuoso. O santo com a nova vestimenta parecia um pastor, mas a partir desse momento nem mais uma gota de chuva lhe entrou no corpo. Garantidamente. E depois quando o tempo amainasse, quem quisesse que lhe tirasse a caroça!

O segundo conto retrata a vida de um casal miserável. Faustino, a personagem principal, é cesteiro de profissão, mas só de longe a longe e por desfastio é que fazia cestos. Nas alturas de fome, em que não havia nada para enganar o estômago, a não ser uma água deslavada com couves, o remédio era ir buscá-lo onde houvesse. Sim, Faustino era ladrão e assaltava para matar a fome. O problema é que naquele inverno todos dormiam de porta bem trancada e a chuva e o vento tolhiam os passos ao mais destemido para assaltar as aldeias vizinhas. Isto já para não falar que um dos últimos assaltos correra mal e para além de cinco costelas partidas, o Faustino malhou com os ossos na cadeia. Depois de muito matutar no caso, o Faustino só vislumbrou uma saída: assaltar a isolada capela da Senhora da Saúde. A mulher desaprovou logo a ideia sacrílega, mas Faustino nem a ouviu. E foi a meio de uma noite de muita água e de vento que se meteu por trilhos de cabra a caminho da capela. À chegada ainda hesitou um instante, pois nunca roubara um lugar sagrado, mas foi a própria intempérie que o empurrou para a frente. Meteu o ombro à porta, entrou, acendeu um castiçal e dirigiu-se à caixa de esmolas. Não estaria ela abarrotar de moedas dos devotos? Arrombou a fechadura à martelada mas, porca de sorte, a caixa estava vazia! Nem um centavo! Ou já não havia fé neste mundo ou então o padre Bento a esvaziara na véspera. A praguejar foi para o altar decidido a levar fosse o que fosse: a cruz, o cálix, o turíbulo. Mas nada de nada, a capela não tinha nada de valor. Desconsolado, bateu com a porta e meteu-se a caminho de casa, onde chegou a meio da madrugada alagado e gelado. No dia a seguir ardia em febre e daí a dias quando o padre Bento foi chamado para lhe dar os óleos, porque a pneumonia não tinha cura, o Faustino ao vê-lo só disse: “prendam, prendam que é ladrão!”

O terceiro conto surge nos “Novos contos da montanha”. É a história de mais um indigente, o velho Garrinchas, que vivia de esmolas e levava uma vida de mendigo. Na véspera de Natal e como as pessoas de Lourosa, a sua aldeia, se aferroavam a dar fosse o que fosse, o pobre Garrinchas não teve outro remédio senão dar à perna e ir pedir para as terras vizinhas. E, talvez por ser véspera de Natal, a ronda tinha-lhe rendido mais que habitual: umas moeditas no bolso e o bornal recheado de iguarias. Embora não tivesse casa nem telha para se abrigar, meteu-se-lhe na cabeça ir consoar à terra-natal. E ali vinha o Garrinchas à sobreposse, a subir a serra para chegar antes do anoitecer a Lourosa. Porém, pelo caminho mais um contratempo: começara a nevar. Coisa ligeira no início, o algodão em rama começa a engrossar e a caiar tudo de branco. E a noite a cair. E o Garrinchas sozinho e no meio da serra. Ali perto ficava a capela da senhora dos Prazeres. E face às circunstâncias, o Garrinchas nem pensou duas vezes: iria pernoitar ali mesmo no alpendre da capela. Arreou o pau com o farnel e tratou de fazer uma fogueira para se aquecer. Mas a lenha estava humedecida da neve e o fogo não pegava. E foi aí que o Garrinchas se lembrou de entrar na capela. A porta estava aberta (seria assalto? descuido?) e foi dentro procurar um papel ou um jornal. Então notou que, a um canto, estava arrumado o andor do ano anterior. E teve outra ideia: desmanchar o andor para aproveitar a madeira seca para a fogueira. E daí a pouco, o Garrinchas tinha no alpendre da capela uma lareira que fazia inveja à de qualquer casa abastada. Quente e abrigado foi ao bornal buscar a broa, o presunto e o chouriço que lhe deram. E nesse preciso momento teve um rebate de consciência. Dirigiu-se novamente ao interior da capela e trouxe as figuras do menino Jesus e da senhora, colocou-as à volta da fogueira e disse: “A senhora faz de quem é, o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José”.