quarta-feira, 31 de outubro de 2018

A hora de Palme

Há já algum tempo que o assunto se discutia, mas sem consequências de maior. Na Europa dizia-se que a população fora referendada e que, sim senhor, a larga maioria dos europeus era a favor do fim da mudança da hora. Em Portugal, as opiniões dividiam-se, mas o povo entrevistado na rua pelos repórteres televisivos, achava que a mudança de hora era uma trapalhada, que só servia para confundir as pessoas, que andavam durante semanas desorientadas. Tudo conversa fiada, porque fazer alguma coisa para mudar este estado de coisas, nem tanto como uma unha negra. Mas Palme chegou-se à frente e tratou do assunto como devia. 

Farta de acordar às tantas da madrugada ora para adiantar, ora para atrasar os ponteiros do relógio de seis em seis meses, a população tomou uma decisão radical: acabar com a mudança de hora! Correu um abaixo-assinado, foi convocada uma assembleia de freguesia extraordinária, e a proposta foi aprovada por unanimidade. Acabou-se a fantochada: quando chegasse o 28 de outubro, os ponteiros dos relógios de Palme seguiriam o seu ritmo normal e não seriam atrasados uma hora. Para trás anda o caranguejo! Não tinha jeito nenhum, perdia-se uma porradaria de tempo a mexer nos relógios, alguns são tão complicados de acertar que obrigavam à consulta dos manuais de fabrico, rompiam-se os mecanismos e as engrenagens, gastavam-se as baterias desnecessariamente e tudo para quê? Com a hora de inverno, as tardes não rendem nada, quando se acaba de almoçar é noite cerrada. Não, palavra de honra, a hora estava bem assim. A decisão, inusitada, rapidamente se espalhou e foi alvo de chacota nas freguesias vizinhas, o povo de Palme não andava a regular bem da cachimónia, olha agora ficarem com um horário diferente do resto. Foi logo colado o epíteto de “galegos” aos habitantes de Palme, pois a freguesia ficaria com o mesmo horário de Espanha. Mas ninguém levou a sério a decisão, quando chegasse o momento, que remédio senão os de Palme acertarem o relógio pela hora legal estipulada pelo Observatório Astronómico de Lisboa. Até que o último sábado de outubro chegou e, como sempre, surgiram os avisos na comunicação social a relembrar que se entraria na hora de inverno e, como tal, que os ponteiros teriam que andar para trás 60 minutos. Às duas da manhã, passava a ser uma da matina outra vez. Bom tanto para quem anda na farra pela madrugada fora, que tinha mais uma hora de borga, como para aqueles que gostam de estar no quentinho nos lençóis, que podiam ficar mais tempo no choco. Mas estas razões pouco importaram aos de Palme e à hora aprazada, nenhum relógio, fosse ele de cuco, de pendulo, de corda, cebola de bolso, ou roskopf de pulso foi mudado para a malograda hora de inverno. 

No dia seguinte, quando em Fragoso, o sino rachado badalava as sete horas da manhã, os cafés de Palme abarrotavam já de gente a tomar o café com a torrada com manteiga. 
- Aqui a vida começa cedo! Comentavam os forasteiros que passavam e viam aquela animação toda logo pela alvorada. Mas o pior veio depois.

Às dez da manhã, como sempre, o padre Viana apeou-se da sua viatura para celebrar a missa dominical, mas bateu com o nariz da porta. A igreja estava fechada e o adro da igreja vazio. Seguramente algo de extraordinariamente grave teria acontecido na freguesia, mas o quê?
- O senhor padre Viana vem uma hora atrasado! Os paroquianos estiveram aqui à sua espera, mas foram-se embora! - disse-lhe a Natividade que saía do cemitério de compor o jazigo do falecido.
- Ora essa! Então, mas eu avisei que a missa seria às 10H pela nova hora…
- Mas já são 11H senhor padre, ora espreite para a torre do relógio!...
E o padre, confuso, foi-se embora, a supor que realmente fora erro seu, e que talvez tivesse sido traído pelo sono na véspera, e que se enganara a mexer no relógio.

Na segunda-feira, as confusões agravaram-se. Os trabalhadores de Palme chegaram mais cedo que os outros uma hora. E isso não passava despercebido.
- Sim senhor, isto é que é dedicação, com este frio e vocês já aqui! Comentavam os encarregados ao verem os de Palme à espera que as portas do estaleiro ou das fábricas abrissem para dar o primeiro dia da semana. O pior era ao final da tarde:
- Então, já ides? Ainda não está na hora!
- Qual não está. São seis da tarde e se você estivesse aqui a horas, tínhamos dado as oito horas regulamentares. Se quiser que fique até às sete, tem que pagar uma hora extra. A dobrar.

Nas carreiras, os motoristas da Transdev estranhavam ao olhar para as paragens desertas de passageiros. Nem viva-alma entrava, nem saía em Palme. Para os das carreiras, o pessoal de Palme estava sob protesto, talvez a reclamar uma baixa de preço nos bilhetes. Por isso, não andavam mais de transportes públicos. Mas para os de Palme, a Transdev tinha mudado os horários sem dar cavaco a ninguém e à hora a que deviam passar para levar o pessoal, andavam por cascos de rolha. Portanto, ala nas próprias viaturas.

Na festa do padroeiro da freguesia, quando a fanfarra chegou, já a procissão estava a recolher à igreja. Só por desfeita.
- Isto são horas?! Perguntou o Ramiro, o mordomo da festa, a espumar de raiva.
- Então, mas o combinado não era estarmos aqui às 14H? tartamudeou o chefe da banda.
- E então, já passa das 15H! Pode voltar para o sítio de onde veio, que não lhe vamos pagar…

Na mudança de ano o desacerto foi ainda maior. Nas outras terras ainda se colocavam as garrafas de espumante no congelador, quando em Palme os foguetes já rebentavam no ar como bombas de dinamite, a dar as boas vindas a 2019. Nas freguesias vizinhas corria como dado adquirido que a população tinha enlouquecido por completo, que fora afetada por uma psicose coletiva. As notícias sobre Palme na comunicação social eram em catadupa, os noticiários faziam diretos, e os genealogistas começaram a esmiuçar as gerações passadas, para decifrar a provável causa do desvario coletivo. Constou-se até que o desatino poderia estar na consanguinidade das gentes da terra, ou seja, do facto da maior parte das pessoas serem parentes umas das outras, como o comprova o facto de quase todos terem o mesmo apelido (Sá). Como é sabido, as avarias causadas pela consanguinidade são frequentes na realeza, onde primos direitos, sobrinhos com tios, noras com sogros, etc., se prestam a fornicações danadas e a casamentos de conveniência para manter o sangue azul na família. Mas será que esta era a origem do problema em Palme?

Segue-se que o cerco à freguesia começou a apertar. O governo farto da brincadeira, ameaçou: ou a freguesia adotava a hora legal de Portugal Continental, ou então haveria represálias - acabavam-se as transferências do Orçamento de Estado. A Câmara de Barcelos, pressionada por Lisboa, olhava com preocupação para esta ovelha tresmalhada e ameaçava com cortes no financiamento municipal e até com a extinção da freguesia. Olha lá que os palmenses se preocupassem: quanto mais as autoridades pressionavam, mais a freguesia teimava em manter a hora como estava. O assunto perdera toda a significação legal e passara a ser um ponto de honra, um finca-pé de exaltação do brio e do orgulho local. E que fechassem à vontade a torneira do financiamento, pois a freguesia remediava bem sem as esmolas de Lisboa e de Barcelos. E, perante a teimosia, surgiram ameaças de ocupação militar e restabelecimento da ordem pela força. Verdade ou mentira, a notícia circulou assim.

Como é bom de ver, a corda estava demasiado esticada e acabou por rebentar para o lado mais frágil. Agora a forma como se rompeu é que foi inesperada. Não foi preciso vir a tropa, nem a polícia de intervenção. Bastou um coração destroçado. Foi assim: a Matilde, o ai-jesus da freguesia, estava de casamento marcado com um rapaz de fora da terra. O nó foi agendado para as 16H de uma cálida tarde de março. A rapariga, que era toda despachada, chegou à igreja num grande aparato um pouco antes da hora prevista. Noivo de grilo! Os minutos passaram-se e não havia forma do Bernardo aparecer. Entretanto, a rapariga e a sua família desesperavam. Na torre da igreja bateram as 16:30H. Nada. Tudo em ânsias à espera. Em surdina, cochichava-se que o rapaz se arrependera, que afinal ele ainda continuava a gostar da outra. A Matilde de coração destroçado e a chorar como uma Madalena, enfia-se no carro e parte desenfreadamente. Os convidados, condoídos e solidários com o gesto da noiva, abandonaram o recinto também. E é quando o padre já vai a sair também que a comitiva do Bernardo, guiada pela hora da terra do rapaz, chega ao adro da igreja de Palme. Mas a noiva e a sua família já lá não estavam. E foi então que se chegou à conclusão que o casamento não se realizou por causa do desacerto da hora de Palme. É que nem aos próprios noivos ocorrera! O casamento acabou por se fazer daí a  semanas, mas a rapariga, perdida de amargura, esteve para se atirar nesse final de tarde às correntes lamacentas do Lima. Para evitar alguma desgraça futura, e porque com a felicidade das pessoas não se brinca, a população lá concedeu em acabar de vez com a comédia da hora. E assim, no último sábado de março, bastou não adiantar os relógios 60 minutos para Palme voltar a entrar na hora oficial de Portugal. Só a Angélia Sá, já velha e amalucada, é que depois de ouvir a informação no rádio, adiantou o relógio para a hora de verão. E no dia seguinte foi a única pessoa a chegar à missa com uma hora de antecedência...