sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

A falência moral de Portugal

Ao longo dos últimos tempos tenho evitado trazer para aqui assuntos de natureza política devido à bolorenta situação em que o país se encontra. Mas a sucessão de acontecimentos dos últimos tempos, sem paralelo nos últimos 40 anos de regime democrático, não pode deixar ninguém indiferente. A sensação que o cidadão comum tem é mais ou menos esta: o país está a saque e, com pouquíssimas exceções, não há ninguém que nos acuda e que inspire confiança. Portugal transformou-se num regime siciliano, onde quem manda são as máfias instituídas em redes obscuras, que controlam lugares de decisão no Estado e no setor privado. Não há pessoas honestas e competentes que cheguem aos lugares de decisão, seja na política, seja na economia ou na finança. O que importa é colocar gente sem escrúpulos que utilizam estes cargos em proveito próprio e para benefício dos grupos que gravitam na sua sombra. 

Na economia assistimos à derrocada de empresas e de grupos empresariais considerados estratégicos para o país. Como recompensa pelos bons serviços prestados, alguns destes gestores ainda são agraciados pelo chefe de Estado com o título de comendador. Vejam a pouca vergonha do que se tem passado na PT. Como foi isto possível? Na finança onde se impunha gente séria e responsável para tratar do dinheiro dos outros, encontramos dos maiores crápulas e gatunos de que há memória. Depois da implosão do BPP e do BPN, no passado mês de agosto esborralhou-se o BES às mãos de Ricardo Salgado, suspeito de desfalques de milhares de milhões. Como foi isto possível? No setor da saúde assistimos a fraudes de várias centenas de milhões de Euros através de esquemas manhosos com receitas falsas. 

Na política temos dos piores exemplos possíveis. Ex-autarcas presos, outros suspeitos de enriquecimento ilícito e de outros crimes de colarinho branco, antigos deputados presos, alguns inclusive indiciados de homicídio no estrangeiro, ex-ministros condenados em processos de corrupção, deputados que estão de manhã no parlamento a aprovar leis e à tarde em escritórios de advogados a defender interesses privados, financiamentos partidários obscuros em troca de contrapartidas também elas pouco claras, governantes que se tornam gestores de empresas que eles próprios privatizaram ou favoreceram, etc., etc. Mesmo as mais altas figuras do Estado não escapam a esta nuvem negra de suspeições. O chefe de Estado com o proveitoso negócio das ações do BPN (de que a filha também largamente beneficiou) ou com a famigerada história da Casa da Coelha no Algarve. O primeiro-ministro no caso da Tecnoforma, que manchou a sua imagem impoluta, em que se soube que: i) ou recebeu subsídios da Assembleia da República a que não tinha direito; ii) ou não declarou rendimentos de que usufruiu aquando da sua benemérita passagem pela ONG (Centro Português para a Cooperação) para a qual trabalhou (?) e que o impedia de obter o tal subsídio. Em causa estarão uns bons milhares de Euros. Nas últimas semanas rebentou o escândalo dos vistos gold, que envolve altos quadros da administração pública, tendo levado à detenção de figuras como o chefe do SEF e o presidente do IRN, cabecilhas de uma teia de corrupção, de branqueamento de dinheiro e de fraude fiscal, que motivou a demissão do ministro da administração interna, pelas ligações perigosas aos alegados meliantes. Ainda os portugueses, atónitos, não tinham digerido totalmente este caso, quando são confrontados com a maior de todas as perplexidades: a detenção e a prisão preventiva do antigo primeiro-ministro José Sócrates por corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal qualificada. Nunca um anterior chefe de governo tinha sido preso em Portugal. Não vale a pena estar aqui a dissecar os pormenores sórdidos que, ao que se diz, justificaram a sua detenção: malas de dinheiro entregues em mão, transferências avultadas a partir de contas de familiares, offshores na Suíça geridos por um testa de ferro… Histórias absolutamente rocambolescas, próprias de um gangster, não de alguém que exerceu altas funções políticas e governativas e que deveria ter um grande sentido de Estado. Estes casos todos formam uma nuvem negra de suspeições e de desconfiança sobre as instituições e os seus dirigentes, mas também de revolta. Porque muitos daqueles que nos têm andado a impor dificuldades e sacrifícios, afinal são os primeiros a prevaricar, a colocar os seus interesses à frente dos do Estado. E com exemplos destes vindos de cima, como não há-de o cidadão comum procurar furtar-se às suas obrigações fiscais, alimentar esquemas de economia paralela, obter subsídios fraudulentos, etc. Se pensarmos um pouco nisto (não se esforcem muito que dá vómitos) facilmente percebemos que o país está atolado num pântano de interesses obscuros de onde dificilmente poderá ser resgatado. Muito pior e mais perigosa que a falência financeira é a falência moral de um país, o descrédito e a desconfiança nas instituições, a ausência de esperança, o esfumar-se do sonho de um país mais justo e solidário que se conquistou com Abril.

Quem nos poderá resgatar deste atoleiro? Na iminência da falência financeira fomos socorridos pela mão generosa dos nossos parceiros europeus e do FMI, que apenas quiseram em troca os nossos salários, os nossos precários empregos, as reformas dos nossos pensionistas. Será que a Europa também nos pode dar a mão para impedir a falência moral? Na verdade, na Europa também temos péssimos exemplos: em Itália, Berlusconi condenado por fraude fiscal; em França, Sarcozy detido por tráfico de influências e violação do segredo de justiça; em Espanha Rajoy envolvido num esquema de financiamento ilegal do seu partido, que ainda há pouco provocou a queda de uma ministra. O próprio atual presidente da Comissão Europeia é acusado de ter cozinhado uma lei que permite a grandes multinacionais negociar secretamente o imposto a pagar com o governo luxemburguês, levando a que muitos milhões de Euros não fossem pagos nos países de origem dessas empresas. Embora complacente com as empresas, o Sr. Junker foi implacável com os povos do sul da Europa. Estes poucos casos mostram-nos que as poucas-vergonhas não são exclusivas de Portugal e que a Europa também não é um exemplo a seguir por ninguém.

Resta-nos então a justiça para nos resgatar do pântano. A sucessão dos últimos casos parece mostrar que a justiça está atenta e ativa. No entanto, a prática diz-nos que nos casos excessivamente complexos e mediáticos, a justiça tem dificuldade em seguir o seu caminho. Principalmente quando estão envolvidas personalidades tão influentes e quando existe tanto ruído em torno dos casos e, frequentemente, fugas seletivas de informação. Resta-nos esperar o desfecho destes casos para então ver se a justiça está realmente a mudar ou se estas investigações são apenas fogo-de-vistas.


Muitos falam que a detenção de Sócrates marcará o fim do regime, que daqui em diante não restará pedra sobre pedra. Não creio. Vai certamente agravar-se a desconfiança e o alheamento dos cidadãos em relação aos políticos e, em particular, aos partidos do chamado arco da governação. O povo vai empertigar-se um pouco mais, mas vai continuar a pagar os desvarios e as trapaças dos seus dirigentes. Talvez os pequenos partidos populistas, como o do Coelho (o da Madeira) ou o do Marinho Pinto tenham maior votação nas próximas eleições. O PS, apesar da forma inteligente como Costa tem lidado com o caso, irá provavelmente sofrer um rombo, pois o antigo secretário-geral e primeiro-ministro é suspeito de crimes financeiros. Com isso abre-se uma réstia de esperança de reeleição para um governo que anda moribundo há vários meses (anos?). É também expectável que os esquemas engendrados pelos prevaricadores passem a ser mais sofisticados e subtis para escaparem à lupa da justiça De resto vai continuar tudo na mesma, isto são tudo bons rapazes! Às vezes dou comigo a pensar que o Otelo até terá razão, isto só vai lá com nova revolução!