segunda-feira, 27 de abril de 2015

A tradição já não é o que era

Palme é uma terra com algumas características únicas. Apesar de algumas delas se terem vindo a perder ou de terem esmorecido, ainda temos traços autênticos e distintivos. Raça curiosa esta, a de Palme!

Na igreja, os homens separavam-se das mulheres. Entravam pela sacristia e ficavam lá em cima, junto ao altar-mor, mais próximos do sacerdote e do sacrário. Outros penetravam pela porta principal mas logo trepavam pelas escadas que, à direita, conduzem ao coro. Sempre acreditei que esta separação entre homens e mulheres era para evitar tentações, pensamentos pecaminosos, desejos proibidos, que seriam tanto mais graves por serem cometidos dentro da própria igreja. Só os velhotes, carregados de doenças e com a carne domada pela idade, se misturavam despudoradamente com as mulheres, para se poderem sentar durante as práticas intermináveis do padre António. Homem que é homem teria que aguentar ali, de pé, estoicamente, cerimónias às vezes com mais de duas horas de duração, a balouçar entre a perna esquerda e a direita, para descansar os músculos. Antes desmaiar e sair em braços, do que ficar em baixo, misturado com as mulheres, a pretexto dos bancos. Agora as coisas já não são assim. Vão menos, muito menos pessoas à missa e já são poucos os homens que ocupam o seu lugar de honra na capela-mor ou no coro. Mas mulheres por lá, nenhuma!

Nas procissões assistia-se a idêntico sectarismo. Os homens à frente (sempre mais importantes que as mulheres como manda a igreja), em duas colunas alinhadas; as mulheres atrás de todo, num magote desordenado, numa espécie de carro-vassoura da procissão. Aqui continua-se exatamente na mesma. Apenas se nota uma menor participação de ambos os géneros nas procissões e dá-se pela falta do padre António no meio da coluna, de olhar inquisidor, a contar o número de homens que vão na procissão, para perceber quantas destas ovelhas se tinham tresmalhado em relação ao ano anterior.

Uma outra tradição que se tem vindo a perder é a de pôr o altifalante da torre da igreja a tocar antes das missas. No tempo em que havia a missa “da manhã”, o altifalante, com o botão do volume no máximo, despertava a freguesia logo a partir das 6:30 H da matina. Ora, especialmente no inverno, 6:30 H é noite velha, o sol, preguiçoso, ainda anda lá pela Europa de leste. Mas em Palme era hora de acordar ou, para alguns recém-chegados da noitada de sábado, de não conseguirem adormecer. Porque era impossível não ouvir o altifalante! Mesmo os mais ensonados e incomodados com a grafonola não deixavam de trautear, ainda que mentalmente, as cantigas da Ana Malhoa (o u depois do ó, faz o a e i ó u…); do Jorge Ferreira (o anel que tu me deste era de vidro e quebrou-se…); ou das Gamelinhas de Palme (menina que vais à fonte, diz-me o que é que vais buscar…). Mesmo nas freguesias vizinhas ouviam-se comentários desagradáveis por causa dos incómodos causados pelo altifalante de Palme que, àquela hora da madrugada, até um morto acordava. Entretanto essa missa “da manhã” acabou, quem habitualmente colocava a música já morreu e, agora, só por festas e por desfastio é que sai música da torre da igreja. Nos restantes dias, silêncio apenas quebrado pelo toque soturno do sino.

Uma outra imagem de marca de Palme eram as vacas (as quadrúpedes, claro). Ao início da manhã e ao final da tarde, os caminhos e a estrada ficavam entupidos de vacas. Eram dezenas, talvez centenas delas que, no seu vagar bovino, iam descarregar os úberes inchados às salas de ordenha da terra. O resultado destas peregrinações era as ruas ficarem atulhadas de excrementos. Nos caminhos, as pessoas tinham que ziguezaguear entre as bosteiras, para não as pisar, como se andassem a jogar à macaca. Na estrada o caso era mais sério, pois as viaturas, velozes, esparrinhavam as fezes a distâncias consideráveis. Era frequente verem-se casas chapiscadas com bosta, as pessoas davam corridas para fugirem aos borrifos, nas paragens dos autocarros, os passageiros abriam guarda-chuvas para se abrigarem dos jatos projetados pelas rodas dos carros. Hoje em dia já não é assim. Só há uma ordenha pública e são poucas as vacas que se veem a circular pela estrada. Mas ainda andam algumas. No mês passado houve até um lamentável acidente, tendo um carro ficado de pantanas depois de abalroar uma manada de vacas. Não morreu ninguém, mas houve feridos e uma vaca com as pernas quebradas. Há tempos vi uma vaca a pastar na agra, foi como se tivesse uma alucinação, impressionou-me quase tanto como se estivesse ali um mastodonte! Há uns anos atrás, mesmo aos domingos, via-se a agra pintalgada de preto e branco, vacas a perder de vista, que bonito, toda a gente tinha gado.

Depois temos as expressões que são exclusivas de Palme. Uma delas ouvia-a aqui há tempos a sair da boca de uma velhota: “hoje o meu home foi à missa a Bustelo!”. Ir à missa a Bustelo – é esta a expressão. Como toda a gente sabe, em Bustelo não há igreja, nem capela, pelo que quando alguém diz que foi à missa a Bustelo, isso significa que não foi à missa. Uma outra expressão também em desuso é responder-se “foi o cerejo” quando não se quer revelar a identidade de quem fez ou disse alguma coisa. O cerejo é uma figura em pedra que está por cima de um portão no lugar do Eirado, pelo que, coitado, não pode sair dali, nem dizer nada. Logo, quando alguém diz “foi o cerejo” é o mesmo que passar um atestado de menoridade a quem pergunta. Seria bom que estas e outras expressões não se perdessem, pois fazem parte da nossa memória local.


Por hoje fico-me por aqui. Confesso que gostei de reler este post. Fala de como éramos, de algumas especificidades nossas, com as quais convivemos e crescemos, que fazem parte da nossa memória, goste-se ou não se goste. Eu, por mim, não renego as minhas origens e gosto destas tradições, que têm que ser vistas no seu tempo e no seu contexto. É curioso isto das tradições, mostram como evoluímos e como continuamos a mudar. A freguesia é como uma pessoa que se vai transformando, lentamente, ao longo do tempo, apenas com uma única diferença: não envelhece. Ou pelo menos vai envelhecendo mais devagar.

1 comentário:

  1. Dou-te os meus sinceros parabéns por este texto e pelo blog

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