quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A fatura da sorte €€

É sabido que os portugueses perdem a cabeça pelo jogo. No Euromilhões, Portugal é de longe o país onde mais se aposta. Então quando as bolinhas, caprichosas, teimam em sair em combinações que não ocorreram a ninguém, os portugueses acotovelam-se em filas intermináveis nos quiosques e casas de jogo para não perderem a oportunidade de mais um Jackpot. Fazem-se desde logo planos: vou comprar um carro com 550 cavalos, vou 3 meses para Tuvalu, vou comprar aquele palacete ao duque de Bragança, vou fazer mais isto e mais aquilo, mas logo o sorteio faz cair por terra todos os sonhos. Ora bolas, saiu o 7 e o 8 e eu tenho o 5 e o 6…valha-nos a apresentadora, bronzeada e descascada, que até dá vida a um morto! A mais recente febre é a das raspadinhas. Aquilo é como quem vai ao casino: compra-se, raspa-se e sabe-se logo se tem prémio ou não. Com um mísero Euro qualquer mortal fica habilitado a ganhar dez mil. O problema é que no meio de tantos milhares de bilhetes, apenas meia dúzia têm o prémio máximo. No entanto, é muito frequente sair 1€ ou até 2€, o que vai dando para a gasolina e para alimentar o vício. Já foram exibidas reportagens onde se mostravam casos de velhotes (e velhotas) que gastam a reforma toda neste jogo (e com as reformas tão baixas nem dá para comprar assim tantas raspadinhas quanto isso). Eu até conheço pessoas (conterrâneos de Palme) que se sujeitam a uma barrigada de fome para, com os cobres poupados no almoço, comprarem raspadinhas. Tão mal empregue! É que além de indigestas, as raspadinhas contém produtos químicos, tintas, pratas e outras porcarias que desgraçam o estômago de qualquer um que as coma…

Pois bem, agora os portugueses têm mais um jogo para se distraírem: a fatura da sorte. Ao contrário dos outros, não é um jogo gerido pela Santa Casa, mas sim pelo Governo. E é muito fácil de jogar. No ato do pagamento de qualquer bem ou serviço, basta pedir uma fatura com o número de contribuinte e, voilá, fica-se automaticamente habilitado ao sorteio de um prémio que pode ascender a 91000€. Quem esfregou as mãos de contente foi o Relvas e o Gaspar pois, ao que consta, muita gente ainda continua a pedir faturas com o número de contribuinte deles. Para além das questões de sorte e de azar, que são mais difíceis de controlar, as probabilidades de ganhar são proporcionais ao número de faturas pedidas por cada contribuinte. E, ao contrário dos outros jogos, não custam nada. O português, como bom profissional do jogo que é, já definiu a tática: pedir faturas por cada produto comprado. Nos mercados vão formar-se filas compridas:

- Ó Carma, olha, eu queria pagar separado esta mercearia: a saca de cebolas é para mim, as tirinhas da barriga são para a minha irmã, os filete de peixe-gato para a minha filha, esses trusses são para o meu Tone (é um porco, anda aos 8 dias sem os mudar!), o garrafão do paizinho é para o meu cunhado e as giletes são para a minha sogra, que daqui a pouco até parece o barbas do Benfica…e arranja-me uma fatura separada de cada coisa…

- Ó mulher mas eu tenho aqui mais pessoas para atender, que raio de panca….

E assim, em vez de uma fatura, conseguem-se seis e aumentar exponencialmente as hipóteses de ganhar. Os prémios não vão ser pecuniários, mas sim em géneros, nomeadamente sob a forma de automóveis de luxo. O anúncio do governo (que rica ação de propaganda) acena aos consumidores com um Porsche Panamera, embora os 91000€ não cheguem para comprar este bólide super desportivo. E mesmo que chegassem, como poderia o português comum pagar a manutenção dum carro destes? De qualquer dos modos, não restam grandes dúvidas que o jogo da fatura vai ser um sucesso, estando previsto um sorteio semanal a partir de abril e alguns sorteios extraordinários ao longo do ano. As faturas de janeiro já contam para os primeiros sorteios, portanto toca a pedir!!

E assim vai o nosso país. O Governo engendra um esquema para supostamente combater a evasão fiscal e não se coíbe de alocar 10 milhões de Euros para a brincadeira. Mas aos pensionistas e funcionários aplica mais uma tesourada nos seus rendimentos, alegando dificuldades orçamentais. A política vai-se transformando num jogo de casino, onde a fatura da sorte vai saindo a quem, em vez de servir o país, se vai servindo dele. A fatura do azar vai continuar a sair aos do costume. Vale uma aposta?



PS: Afinal o Governo desiludiu uma vez mais os portugueses. Ontem, 24 de Março, foi anunciado que as viaturas a sortear serão da marca Audi: um Audi A4 nos sorteios semanais e um Audi A6 nos sorteios extraordinários. Os cerca de 47000€ que custa este segundo bólide ficam muito longe dos 91000€ inicialmente anunciados. Até no raio do sorteio houve uma tesourada! Apesar disso, parece que o número de pessoas que pediu faturas com número fiscal subiu 41% no mês de janeiro. O português não brinca em serviço! Agora não vão faltar por aí Audis A4 a derreter a carteira dos sortudos. Num inquérito de rua jornalístico, muitos transeuntes manifestaram intenção de se desfazerem dos carros dos anéis para pagar contas e dívidas! Na verdade, este sorteio não faz nenhum sentido, pois apela ao consumismo e à importação de bens de luxo, que os portugueses não podem pagar e pelos quais muitos ainda estão com a corda na garganta. Antes de carros importados, o Governo devia sortear cabazes de compras (já viram o que eram 40000€ em cartão Continente?), produtos de primeira necessidade, cheques para abater nas prestações da casa ou, simplesmente, bilhetes de avião para as pessoas se pisgarem daqui para fora. Isso sim seria um sorteio prestável e de cariz social. Agora Audis A4 e A6, para quê e para quem?



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