sexta-feira, 9 de março de 2012

O peditório

Palme é terra de gente humilde e trabalhadora. Nos mais diversos ofícios e paragens, as gentes de Palme mourejam de sol a sol, tal como a formiga previdente, que não descansa durante o verão, para garantir o seu sustento para o Inverno. Além de trabalhadoras, as pessoas são poupadas e relativamente comedidas nos seus gastos, não dando, por norma, um passo maior do que a perna. Esta mentalidade, que vem muito de trás, foi responsável por Palme ser tradicionalmente uma terra de dinheiro invisível, onde a falta de grandes sinais exteriores de riqueza é desmentida pela existência de gordas contas bancárias e até de colchões forrados com notas roxas. Mas, ao longo das últimas duas décadas, a onda consumista que varreu a sociedade portuguesa, atingiu também os hábitos das gentes de Palme, que se tornaram mais esbanjadoras. Basta dar uma volta pelas ruas da freguesia para nos depararmos com moradias aburguesadas, à porta das quais estão com frequência estrebarias metálicas de origem germânica, onde os seus proprietários se alapam para depois se pavonearem pelas ruas da terra. Mas, para além dos teres e dos haveres, as gentes de Palme são também conhecidas pelo seu espírito solidário e pela forma generosa como ajudam os seus semelhantes. Não há instituição ou campanha que passe por Palme e que vá embora de mãos a abanar. Seja através de dinheiro, de roupas, de alimentos, de artefactos, de força braçal ou até de palavras de conforto, se o caso o exigir, Palme está sempre disponível para ajudar os mais carenciados que batem à sua porta. E até para acudir às situações de maior emergência que ocorrem no interior da própria terra. A iniciativa que espontaneamente partiu de um grupo de beneméritos para restaurar a capela do Senhor dos Aflitos é disso um bom exemplo.

Assim, foi sem surpresas que a freguesia ficou condoída com a declaração feita pelo Chefe de Estado no passado mês de Janeiro, quando deu a conhecer ao país a sua precária condição financeira, que resulta do valor que recebe em pensões não ser suficiente para fazer face às suas despesas correntes. Nos dias seguintes vieram a lume mais detalhes sobre a inquietante situação do senhor Presidente, nomeadamente que o valor que declarara ter recebido sob a forma de pensões ser de 10.000€/mês. Os detratores mais ferozes assanharam-se logo contra o senhor Presidente, referindo que aquela declaração era uma ofensa a umas largas centenas de milhares de pensionistas que nem em 3 anos recebem o que o senhor Presidente aufere num único mês. Bem tola e populista é esta comparação! Os pensionistas que recebem 200 e poucos euros têm, habitualmente, poucas despesas e é sabido que muitos deles, que vivem em aldeias, até conseguem juntar boas maquias, pois alimentam-se do que a terra dá. Agora no caso do senhor Presidente, como é que 10.000€/mês poderão dar para viver? Já imaginaram quanto pagará de renda pelo Palácio de Belém, uma casa tão grande e com tantos empregados? Uma fortuna, certamente. E em viagens? A viajar sempre de um lado para o outro como um traga-mundos, há-de ser uma despesa e tanto. E já pensaram nos consumos do bólide presidencial que deve beber para cima de 12L/100km ao preço que os combustíveis estão? Tudo pago do seu bolso. E as jantaradas com outros chefes de estado, diplomatas e outros que tais a comerem e a beberem do melhor à pala do Presidente? Uma pipa de massa. E as estadias em suites de credenciados hotéis de 5* em não menos credenciadas cidades por esse mundo fora? Custam-lhe os olhos da cara. E o guarda-roupa de fino corte italiano que tem que renovar constantemente para os seus compromissos públicos, para não parecer antiquado nem forreta? Um sumidouro de dinheiro (só fraques já foram três este ano). Não contabilizando outras miudezas, estes encargos atreitos ao exercício do cargo presidencial mostram quão tão minguadas são as pensões do Senhor Presidente que, coitado, anda a gastar das suas poupanças para servir o país.

Segue-se que a revelação feita pelo senhor Presidente comoveu as gentes de Palme que, como se sabe, nutrem uma especial devoção pela sua pessoa. Logo no dia a seguir, o caso foi discutido nos cafés como merecia. Não se vendo forma como as gentes da capital, tão endividadas e insensíveis a humanismos poderiam valer ao senhor Presidente, surgiu a feliz ideia de organizar um peditório, cujas verbas e proveitos reverteriam para Belém. Um grupo de notáveis, mais angustiados com os apertos do senhor Presidente, tratou de organizar a forma como se iria processar o peditório e estabeleceu os contactos necessários para que nada faltasse em termos logísticos. Na missa das nove do domingo seguinte, o padre António, por entre tossidelas e assoadelas, anunciou a finalidade do peditório, vociferando contra aqueles que conduziram o país ao ponto a que chegou, onde já nem o cargo presidencial é dignificado. E continuou assim discorrendo contra a sociedade, contra a degradação dos costumes, contra a perdição da carne e sem que ninguém percebesse a ligação, rematou a homilia a falar do dia dos Fieis Defuntos. E para desespero da assembleia, antes de dar a bênção final, puxou novamente o tema à baila, tendo repetido tudo o que dissera antes, que o que dermos neste mundo será devolvido a dobrar no outro, que temos que ajudar os nossos irmãos, que a vida é um vale de lágrimas, etc., etc., o que levou algumas velhotas a concluir que este ano a festa de Santo André ia ser a valer, tal era o empenho que o pároco estava a pôr no peditório.

Equívocos à parte, no fim de semana do Carnaval, o peditório correu as ruas e as ruelas da freguesia. A camioneta do Razão, armada de altifalante, recolheu os víveres que iriam para a mesa do Senhor Presidente, enquanto à frente, apeados, seguiam os beneméritos desta operação, uns a recolherem e a colocarem as oferendas no veículo, outros munidos com sacolas a tiracolo, onde colocavam o dinheirinho que iria engordar a conta presidencial (talvez ainda seja no BPN) e outros a “desarriscarem” as casas que tinham contribuído (os que procuraram esquivar-se foram sujeitos a duas ou mais visitas da comitiva).

O balanço do peditório foi um estrondoso sucesso para gáudio dos organizadores, superando de longe as ofertas que se costumam angariar nas esmolas do S. Miguel. A organização, gentilmente, cedeu-nos a lista dos bens recolhidos e o valor pecuniário obtido com o peditório, informação que, aliás, está afixada na porta da Igreja, onde constam também os nomes das ovelhas negras que não contribuíram (por uma questão de privacidade não vamos revelar aqui o nome desses infaustos). Assim, o resultado do peditório saldou-se no seguinte: 12 arrobas de cebolas (das vermelhas, que fazem chorar); 8 molhadas de bons alhos; 32 arrobas de batata (monalisa, baraka, kennebec, olho de perdiz, entre outras variedades incógnitas); 7 arrobas de centeio sem praganas; 27 arrobas de milho (do miúdo e não daquelas favocas híbridas que vêm de fora); 10 arrobas de feijão (o senhor Presidente, que é grande apreciador de feijoadas, coloca-lhe sempre umas folhas de segurelha, para evitar turbulências intestinais, suscetíveis de manchar indelevelmente a sua reputação nas cerimónias oficiais); 13 abóboras porqueiras de bom porte; 12 dúzias de ovos com gemas como o ouro; 14 frascos de mel natural; 8 litros de bagaço (consta que só um produtor ofereceu 15 litros, pelo que houve aqui uma suspeitosa diminuição no stock desta bebida); 20 pares de galos como cabritos, de crista eriçada e de espora afiada; 37 galinhas das mais variadas condições; 4 patos marrecos; 1 imponente peru com 12kg; 42 coelhos, não contabilizando os que iam dentro das barrigas prenhas das progenitoras; 1 leitão bísaro, que há-de dar ricas fêveras; 2 cordeiros já desmamados; 6kg de chouriças de sangue e 9kg de chouriços de carne, que até fazem crescer água na boca; 1 presunto ainda intacto; 3 broas de milho cozidas em forno de lenha; e 4kg de bolo-rei, que é tão do agrado do senhor Presidente, e que foi especialmente confeccionado para o efeito pelo Luciano.

Para além dos víveres, a coleta rendeu 15750€, cifra muito considerável, tendo em conta a dimensão da terra e a natureza somítica de muitas pessoas, o que só comprova a simpatia e a generosidade dos palmenses para com o senhor Presidente. O acervo do peditório já foi entregue às autoridades da Casa Civil da Presidência, que fizeram deslocar várias furgonetas para recolherem o que de melhor o “chão sagrado” de Palme produz (aqui limitamo-nos a reproduzir a expressão utilizada pelo presidente da Junta, que descreveu dessa forma magistral a boa aptidão agrícola dos solos da freguesia). Apesar da agenda do senhor Presidente o ter impedido de comparecer em Palme, para desilusão de muitos que o queriam ver em carne e osso, o Chefe de Estado, pela boca do representante da Casa Civil, agradeceu a compreensão e o espírito solidário das gentes de Palme, esperando que outras terras por esse Portugal inteiro façam o mesmo.

Os víveres, depois de confirmada a sua qualidade por entidades competentes, foram guardados nas tulhas do palácio de Belém por indicação da Primeira-dama, destinando-se exclusivamente à alimentação da família presidencial. Em relação ao dinheiro, sabe-se que o senhor Presidente já conversou com o seu amigo Oliveira e Costa, que é bastante calejado em engenharia financeira, com a finalidade de aplicar o capital em produtos de elevado retorno, porque os certificados de aforro não dão para a água que se bebe.


De resto, nas últimas aparições públicas, alguns notaram que o senhor Presidente está até mais gordo de cara e que tem uma tez mais rosada, atribuindo tais progressos à alimentação mais rica e folgada que as gentes de Palme lhe proporcionaram. Um bem haja a todos!


PS: Faz hoje um ano que o senhor Presidente tomou posse no seu segundo mandato e decorrem apenas 48H de ter sido entregue no Parlamento uma petição subscrita por 40 000 cidadãos que reclamam a sua demissão. Não valendo a pena determo-nos por mais tempo na análise das insensatas palavras do senhor Presidente, dois acontecimentos ocorridos nas últimas semanas merecem reflexão sobre a lisura do seu comportamento. Um prende-se com a demissão do presidente da República da Alemanha pelo seu envolvimento num escândalo financeiro (um esquema de favorecimento, através do qual conseguiu uma taxa de juro inferior à cobrada a outros clientes). Em Portugal, temos um Presidente que lucrou dezenas de milhares de Euros num negócio pouco claro realizado através de um banco, cuja salvação da bancarrota já custou ao erário público vários milhares de milhões de Euros. Sobre o assunto, o senhor Presidente, sempre muito ofendido, nunca deu cavaco a ninguém. Pelo menos do ponto de vista moral, é um comportamento indecoroso e indigno de um Chefe de Estado. Mais recentemente, o senhor Presidente protagonizou outro episódio ao ter cancelado uma visita a uma escola, onde o esperava um grupo de adolescentes em protesto. Há umas décadas atrás tivemos um candidato à Presidência da República que ousou enfrentar e demitir o ditador que liderava os destinos do país. Ficou conhecido como o “general sem medo”e pagou com a própria vida a sua ousadia. Agora temos um presidente que receia enfrentar as pessoas que, inquestionavelmente, têm razões para protestar e que, mais grave do que isso, é refém dos seus próprios medos, das suas contradições e do seu passado. Mas dos fracos não há-de rezar a história...



1 comentário:

  1. Que delícia de texto, Águia.
    É pura ficção, mas não tenho tenho dúvidas de que os palmenses,politicamente fíéis seguidores do "centrão", e por arrasto do Sr. Silva, contribuiriam alegre e solidariamente para tão nobre causa.
    Infelizmente, as gentes de Palme têm a mesma "afficion" pela política como pelos clubes de futebol. E isso é péssimo, trava a mudança e evolução de mentalidades.

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