O Natal é uma das épocas mais aguardadas do ano. As ruas e as
casas enchem-se de luzes, as pessoas reencontram-se e confraternizam à volta da
lareira, as mesas aburguesam-se com os melhores serviços e com enfeites natalícios,
as travessas transbordam de iguarias, no ar paira alegria, satisfação e, ainda
que por breves momentos, paz. O motivo: a comemoração do nascimento de Jesus.
Mas se há comemoração que tem sido adulterada, o Natal é uma delas.
Em primeiro
lugar e, para um vasto número de pessoas, o Natal perdeu toda a significância
espiritual e religiosa e está confinado a uma vertente meramente material e
consumista. Para muitas pessoas, o Natal é simplesmente sinónimo de troca de
prendas, de muitas prendas. Por estes dias, os centros comerciais estão
transformados em autênticos templos de consumo, onde as pessoas, desvairadas
com a ilusão do cartão de crédito, se acotovelam nas lojas atulhadas de gente e
se atropelam nos corredores, carregadas com sacos, de onde espreitam embrulhos
com lacinhos. Deambular por estes antros de consumo em vésperas do Natal é uma
espécie de teste à resistência física e mental a que, alguém com dois palmos de
juízo, não se sujeita. O lixo, que se amontoa às rumas pelas ruas a partir do
dia 25, é a face mais crua e triste deste Natal consumista.
Em segundo
lugar, apesar do Natal evocar o nascimento de Jesus, há muito tempo que a
figura do menino foi ultrapassada pela do Pai Natal. O velhote bonacheirão,
barrigudo, com longas barbas brancas e todo vestido de vermelho, que viaja num
trenó com um saco de prendas às costas, transformou-se na imagem simbólica do
Natal. O pai Natal está em todo o lado, nos anúncios, nos centros comerciais,
há corridas de pais Natal, filmes com o pai Natal, coros com dezenas de pais
Natal, chocolates em forma do pai Natal, vendem-se disfarces de pai Natal,
colocam-se pais Natal em peluche a trepar pelas janelas, pelas chaminés, nos
espelhos retrovisores, toques de telemóvel com ho, ho, ho, etc. É uma figura
que se propaga de forma viral. Como foi possível o pai Natal assumir este
protagonismo? É fácil de explicar: o menino Jesus traz uma mensagem de paz e de
solidariedade entre os homens. O pai Natal traz um saco de presentes. A escolha
é óbvia. O protagonismo do pai Natal corresponde à vitória da sociedade
consumista e, em particular, às estratégias de marketing de grandes empresas
multinacionais, nomeadamente da Coca-Cola, que foi quem criou e promoveu a
imagem do pai Natal tal como a conhecemos. E depois há o próprio desacerto na
data escolhida para a entrega dos presentes. Se a oferta de presentes se
inspira no ouro, incenso e mirra com que os reis magos prendaram o menino
Jesus, então a data conveniente seria a de 6 de janeiro e não a de 24 de dezembro
(apesar de não ser certo que os reis magos chegaram a Belém no dia 6 de
Janeiro). Aqui honra seja feita aos espanhóis, que trocam presentes na noite de
reis e não na noite de Natal.
A terceira
adulteração corresponde à própria data em que é celebrado o Natal. Não existem
evidências em documento nenhum de que o nascimento de Jesus tenha ocorrido a 25
de Dezembro. Tal facto é reconhecido pela igreja e o próprio padre Afonso, nas
suas intermináveis homilias em Palme, chegou a referir várias vezes que o 25 de
Dezembro era uma data simbólica para celebrar o Natal. Foi o imperador romano
Constantino que, no ano 314, estipulou que Jesus nascera no dia 25 de Dezembro.
Aparentemente, a escolha desta data ficou a dever-se a dois motivos principais.
Em primeiro lugar para coincidir e, dessa forma retirar importância, à festa
pagã do sol, relacionada com o solstício do inverno, que era tradicionalmente
festejada pelos romanos. E, depois, para separar a comemoração cristã de
qualquer associação judaica, sugerindo que Jesus não era judeu. Isto porque,
algumas tradições judaicas referem o mês de setembro como o mês do nascimento
dos herdeiros dinásticos. No século II, Clemente de Alexandria referiu que
diferentes grupos Cristãos propunham várias datas para o nascimento de Jesus:
28 de Agosto, 20 de Maio e 21 de Abril. Na Igreja do Oriente, por volta do
século IV, impôs-se o dia 6 de Janeiro, que ainda hoje se mantém como o dia de
Natal em alguns países, como na Arménia. Ao certo não se sabe qual o dia e o
mês do nascimento de Jesus, embora alguns sugiram que terá sido na primavera,
tendo em conta à referência aos pastores que guardavam os rebanhos durante a
noite feita por S. Lucas.
A quarta
grande adulteração corresponde ao ano em que Jesus nasceu. Como se sabe, o
calendário do mundo ocidental mede o tempo em função do nascimento de cristo,
havendo um período antes de Cristo (a.C.) e um período depois de Cristo (d.C.).
Assim e de acordo com o nosso calendário, Jesus terá nascido há 2015 anos. As
únicas fontes de informação sobre o ano do nascimento de Cristo são os
evangelhos, nomeadamente o de S. Mateus e o de S. Lucas. S. Mateus refere que Jesus nasceu durante o reinado de
Herodes da Judeia (Herodes I, o Grande), que morreu no ano hoje classificado
como 4 a.C. Sabe-se isso por causa do historiador romano Josephus que relatou
que Herodes (o Grande) morreu depois de um eclipse lunar. E a ciência revela
que houve um eclipse na noite de 13 Março de 4 a.C. Além disso, contando os
anos do seu reinado ou com base em moedas encontradas em escavações arqueológicas,
conclui-se que Herodes governou até 4 a.C. Portanto e de acordo com S. Mateus,
Jesus terá nascido em 4 a.C. ou antes. O evangelho de S. Lucas indica, porém,
uma data diferente, dizendo que Jesus nasceu no ano do censo judaico do
imperador Augusto. Este censo, que aparece documentado noutras fontes
históricas, ocorreu no último ano do reinado de Herodes Arquelau (filho de
Herodes o Grande), que foi deposto em 6 d.C. Pode-se então concluir que os dois
evangelhos diferem em, pelo menos, em 9 anos para o nascimento de Jesus: antes
de 4 a.C. (S. Mateus) e em 6 d.C. (S. Lucas). Muitos estudiosos bíblicos
referem que Jesus terá nascido em 4 a.C., 5 a.C. ou até em 7 a.C. Este último é apontado pela ciência como tendo ocorrido uma invulgar
conjunção de Júpiter e Saturno, que poderá corresponder à estrela que os reis
magos seguiram. Independentemente de não existirem provas concludentes sobre o
ano exato da natividade, é evidente que a convenção “antes de Cristo” e “depois
de Cristo” está errada e nem faz grande sentido. Na prática, quando festejamos
a entrada no ano 2000 já estaríamos, em 2004, 2005 ou até mais….e o ano de 2015
apesar de ainda não ter acabado, já terá passado há muito tempo. Parece, pois, que
estamos a viver no passado.
A adoração dos reis magos ao menino Jesus (pintura de Giotto, 1306)
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