Palme é uma terra com
algumas características únicas. Apesar de algumas delas se terem vindo a perder
ou de terem esmorecido, ainda temos traços autênticos e distintivos. Raça
curiosa esta, a de Palme!
Na igreja, os homens
separavam-se das mulheres. Entravam pela sacristia e ficavam lá em cima, junto
ao altar-mor, mais próximos do sacerdote e do sacrário. Outros penetravam pela
porta principal mas logo trepavam pelas escadas que, à direita, conduzem ao coro.
Sempre acreditei que esta separação entre homens e mulheres era para evitar
tentações, pensamentos pecaminosos, desejos proibidos, que seriam tanto mais
graves por serem cometidos dentro da própria igreja. Só os velhotes, carregados
de doenças e com a carne domada pela idade, se misturavam despudoradamente com
as mulheres, para se poderem sentar durante as práticas intermináveis do padre
António. Homem que é homem teria que aguentar ali, de pé, estoicamente,
cerimónias às vezes com mais de duas horas de duração, a balouçar entre a perna
esquerda e a direita, para descansar os músculos. Antes desmaiar e sair em
braços, do que ficar em baixo, misturado com as mulheres, a pretexto dos
bancos. Agora as coisas já não são assim. Vão menos, muito menos pessoas à
missa e já são poucos os homens que ocupam o seu lugar de honra na capela-mor
ou no coro. Mas mulheres por lá, nenhuma!
Nas procissões assistia-se a
idêntico sectarismo. Os homens à frente (sempre mais importantes que as
mulheres como manda a igreja), em duas colunas alinhadas; as mulheres atrás de
todo, num magote desordenado, numa espécie de carro-vassoura da procissão. Aqui
continua-se exatamente na mesma. Apenas se nota uma menor participação de ambos
os géneros nas procissões e dá-se pela falta do padre António no meio da
coluna, de olhar inquisidor, a contar o número de homens que vão na procissão,
para perceber quantas destas ovelhas se tinham tresmalhado em relação ao ano
anterior.
Uma outra tradição que se
tem vindo a perder é a de pôr o altifalante da torre da igreja a tocar antes
das missas. No tempo em que havia a missa “da manhã”, o altifalante, com o botão
do volume no máximo, despertava a freguesia logo a partir das 6:30 H da matina.
Ora, especialmente no inverno, 6:30 H é noite velha, o sol, preguiçoso, ainda
anda lá pela Europa de leste. Mas em Palme era hora de acordar ou, para alguns
recém-chegados da noitada de sábado, de não conseguirem adormecer. Porque era
impossível não ouvir o altifalante! Mesmo os mais ensonados e incomodados com a
grafonola não deixavam de trautear, ainda que mentalmente, as cantigas da Ana
Malhoa (o u depois do ó, faz o a e i ó u…); do Jorge Ferreira (o anel que tu me
deste era de vidro e quebrou-se…); ou das Gamelinhas de Palme (menina que vais
à fonte, diz-me o que é que vais buscar…). Mesmo nas freguesias vizinhas
ouviam-se comentários desagradáveis por causa dos incómodos causados pelo
altifalante de Palme que, àquela hora da madrugada, até um morto acordava.
Entretanto essa missa “da manhã” acabou, quem habitualmente colocava a música
já morreu e, agora, só por festas e por desfastio é que sai música da torre da
igreja. Nos restantes dias, silêncio apenas quebrado pelo toque soturno do
sino.
Uma outra imagem de marca de
Palme eram as vacas (as quadrúpedes, claro). Ao início da manhã e ao final da
tarde, os caminhos e a estrada ficavam entupidos de vacas. Eram dezenas, talvez
centenas delas que, no seu vagar bovino, iam descarregar os úberes inchados às
salas de ordenha da terra. O resultado destas peregrinações era as ruas ficarem
atulhadas de excrementos. Nos caminhos, as pessoas tinham que ziguezaguear
entre as bosteiras, para não as pisar, como se andassem a jogar à macaca. Na
estrada o caso era mais sério, pois as viaturas, velozes, esparrinhavam as
fezes a distâncias consideráveis. Era frequente verem-se casas chapiscadas com
bosta, as pessoas davam corridas para fugirem aos borrifos, nas paragens dos
autocarros, os passageiros abriam guarda-chuvas para se abrigarem dos jatos
projetados pelas rodas dos carros. Hoje em dia já não é assim. Só há uma
ordenha pública e são poucas as vacas que se veem a circular pela estrada. Mas
ainda andam algumas. No mês passado houve até um lamentável acidente, tendo um
carro ficado de pantanas depois de abalroar uma manada de vacas. Não morreu
ninguém, mas houve feridos e uma vaca com as pernas quebradas. Há tempos vi uma
vaca a pastar na agra, foi como se tivesse uma alucinação, impressionou-me
quase tanto como se estivesse ali um mastodonte! Há uns anos atrás, mesmo aos
domingos, via-se a agra pintalgada de preto e branco, vacas a perder de vista,
que bonito, toda a gente tinha gado.
Depois temos as expressões
que são exclusivas de Palme. Uma delas ouvia-a aqui há tempos a sair da boca de
uma velhota: “hoje o meu home foi à missa a Bustelo!”. Ir à missa a Bustelo – é esta a expressão. Como toda a gente sabe,
em Bustelo não há igreja, nem capela, pelo que quando alguém diz que foi à
missa a Bustelo, isso significa que não foi à missa. Uma outra expressão também
em desuso é responder-se “foi o cerejo” quando não se quer revelar a identidade
de quem fez ou disse alguma coisa. O cerejo é uma figura em pedra que está por
cima de um portão no lugar do Eirado, pelo que, coitado, não pode sair dali, nem
dizer nada. Logo, quando alguém diz “foi o cerejo” é o mesmo que passar um
atestado de menoridade a quem pergunta. Seria bom que estas e outras expressões
não se perdessem, pois fazem parte da nossa memória local.
Por hoje fico-me por aqui.
Confesso que gostei de reler este post. Fala de como éramos, de algumas
especificidades nossas, com as quais convivemos e crescemos, que fazem parte da
nossa memória, goste-se ou não se goste. Eu, por mim, não renego as minhas
origens e gosto destas tradições, que têm que ser vistas no seu tempo e no seu contexto.
É curioso isto das tradições, mostram como evoluímos e como continuamos a
mudar. A freguesia é como uma pessoa que se vai transformando, lentamente, ao
longo do tempo, apenas com uma única diferença: não envelhece. Ou pelo menos
vai envelhecendo mais devagar.
Dou-te os meus sinceros parabéns por este texto e pelo blog
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