Em Julho do ano passado, por razões profissionais, tive que
me deslocar à Normandia. Nunca tinha estado naquela região de França, que está
indelevelmente associada à história mundial, por ter sido o local onde as
tropas aliadas desembarcaram para rechaçar os ocupantes nazis, dando início à
libertação da França. Gostei das paisagens verdejantes e das temperaturas
amenas que encontrei, das manhãs com neblinas que me fizeram lembrar o litoral
Norte de Portugal. Nessa viagem curta, de apenas uma semana, fiquei a saber que
a Normandia é uma das regiões de excelência de produção de sidra, ou seja, de
vinho de maçã, por causa das suas especificidades climáticas. Confesso que
nunca tinha provado tal bebida, apesar de se encontrar em qualquer superfície
comercial. Levei à risca o princípio de “em Roma sê Romano” e resolvi provar a
afamada sidra da Normandia. Foi uma agradável surpresa, é uma bebida fresca,
aromática, com uma vivacidade e uma tonalidade que recorda o Champagne. Durante
esses dias de verão tépido no noroeste de França, ataquei a sidra sempre que
pude.
À chegada, resolvi investigar um pouco mais sobre esta bebida. Li alguns
documentos, assisti a vídeos relativos ao processo de produção e, vai daí,
tomei uma firme decisão: a de tentar produzir uma sidra caseira? Nos próximos
parágrafos vou descrever todos os passos que segui para confecionar o meu
próprio néctar caseiro de maçã.
Em Palme, 2014 foi um ano de muita maçã, o que facilitou a
realização da experiência, caso contrário teria que comprar a matéria-prima.
Assim, o primeiro passo foi o de apanhar uma quantidade considerável de maçãs. Apanhei cerca de 20
kg. Procurei utilizar maçãs de três variedades, embora duas delas não saiba ao
certo de que variedade são. Uma delas é espriega portuguesa, a outra será royal
gala ou starking, a terceira, definitivamente, não sei.
A segunda etapa consistiu em submeter as maçãs a uma lavagem
rigorosa. Esta operação era ainda mais importante pelo facto de estar a
utilizar algumas maçãs caídas no chão. Foram submetidas a três ou quatro lavagens,
tendo ficado bem escaroladas e luzidias. De seguida, foi necessário retirar as partes amachucadas,
furadas e putrefatas das maçãs. Aqui os cuidados deverão ser redobrados, pois a
utilização de partes podres poderá afetar o paladar da sidra. Acabei por
retirar também os caroços, ficando apenas com as fatias sãs e limpas das maçãs.
Figura 1: Maçãs lavadas e partidas
Realizada esta tarefa, a operação seguinte foi a de triturar
as fatias/metades das maçãs para converter tudo numa pasta. Pensei em várias
opções (liquidificadora, picadora, etc.), mas atendendo à quantidade (e ao que
me custaram as máquinas) decidi recorrer à tradicional esmagadora das uvas.
Como é bom de ver, este aparelho foi concebido para esmagar uvas, que são mais
moles e sumarentas do que as maçãs. Apesar de não reduzir as maçãs a uma pasta
uniforme, a esmagadora cumpriu grosseiramente e de uma forma rápida as funções
pedidas. No entanto, este será um dos aspetos a melhorar futuramente.
Figura 2: Aspeto das maçãs após trituração
Com as maçãs amassadas desta forma, a quantidade de sumo
visível foi reduzida, o que me causou apreensão em relação à quantidade final
de sidra que conseguiria obter. Por isso, havia que apertar a pasta para
extrair todo o sumo possível. Vai daí, coloquei a esmagada de maçã numa prensa
e apertei quanto pude (na forma tradicional, os franceses colocam as maçãs na
prensa sob camadas de colmo). Da fonte da prensa começou a sair um fio amarelo
e transparente de sumo de maçã. Logo ali, para me compensar do trabalho e do
esforço, entornei dois copos do delicioso sumo de maçã natural, extraído por
processo mecânico. Ao todo, a fonte jorrou cerca de 13 litros de sumo, nada mau
quando pensei que fosse dar uns 3 ou 4 litros. Recolhi um copo de sumo e
pesei-o: a escala deu indicações que a bebida teria uma percentagem de álcool
de 7%. Nada mau também.
Figura 3: Prensagem da esmagada
Figura 4: Pesagem do sumo
O sumo de maçã foi, então, colocado em garrafões esterilizados
de vidro de 5 litros, onde decorreu o demorado processo de fermentação, durante
o qual as simpáticas leveduras transformam os açúcares em álcool. Como não
tinha borbulhadores para colocar nos garrafões, resolvi furar as rolhas e
meter-lhe umas mangueiras plásticas, que foram mergulhadas num recipiente com
água. Dessa forma era possível acompanhar a fermentação e evitar o contacto do
sumo com o oxigénio. Não acrescentei absolutamente nada ao sumo, nem açúcar,
nem leveduras, deixei que o processo decorresse da forma mais natural possível.
Ao fim de dois dias, começaram a surgir as primeiras bolhinhas de ar (dióxido
de carbono) na água, sinal de que as leveduras já estavam a atuar e que a
fermentação se tinha iniciado. Ao contrário do vinho, cuja fermentação é rápida
e intensa, a das maçãs é lenta, tendo demorado cerca de 3 semanas.
Figura 5: Sumo em garrafões de 5 l
Figura 6: Preparativos para a fermentação
Depois da fermentação ter terminado, deixei estar a sidra
mais uma semana em repouso. A etapa seguinte foi a de passar a sidra para
garrafas devidamente esterilizadas. Reparei que havia uma quantidade
considerável de pouso no fundo dos garrafões. Para evitar que estes sedimentos
fossem engarrafados, utilizei filtros e uma mangueira para passar a sidra, por
gravidade, dos garrafões para as garrafas, tarefa durante a qual já deu para
provar o néctar ainda cru assim obtido (gostei logo na ocasião). De seguida,
coloquei rótulos nas garrafas (tudo muito profissional) com o nome da
propriedade onde tenho as generosas macieiras. Por último, as garrafas foram
armazenadas para estagiar durante algum tempo.
Figura 7: Vinho de maçã engarrafado e pormenor do rótulo
Em Março, ou seja, quatro meses depois, não aguentei mais e
decidi abrir a primeira garrafa. A rolha saiu com estrondo, a sidra apresentava
uma cor cristalina, com seiva efervescente e um agradável aroma a maçã. Faltava
submeter o néctar à definitiva prova oral das papilas gustativas. O teste
superou as melhores expectativas, a sidra é leve, ligeira e equilibrada, com
travo inebriante de maçã com notas frescas de citrinos e um final de boca que
apetece repetir. Por isso, a garrafa durou apenas uns instantes, tendo
convencido uns convivas que também provaram e gabaram a bebida.
Foi esta a experiência, a de produzir, em Palme, uma sidra
100% natural feita a partir de maçãs biológicas e por processos meramente
artesanais, que resolvi trazer aqui hoje. Fiquei fã da bebida e vou tentar
aperfeiçoar o processo de fabrico no futuro, nomeadamente o da trituração. Em
breve vou partilhar convosco outras experiências similares. À vossa!
Parabéns. Ao ler o seu texto, parecia que estava mesmo a acompanhar no local a realização dos trabalhos. Eu também estou decidido a produzir cerveja tradicional.
ResponderEliminarParabéns. Ao ler o seu texto, parecia que estava mesmo a acompanhar no local a realização dos trabalhos. Eu também estou decidido a produzir cerveja tradicional.
ResponderEliminarGostei muito da apresentação
ResponderEliminarOlá "Palme", tudo bem? Tem novidades sobre o fabrico da Sidra? Seria importante alguns detalhes sobre a sua empreitada, se deu continuidade, outros.... Obrigado.
ResponderEliminarP.S.Gostei muito da apresentação, fabrico cerveja artesanal e estou interessado e estudando sobre o fabrico da Sidra ("Cidra" no Brasil) e tenho a pretensão de iniciar com a Sidra artesanal e o vinagre de maça.
Olá Paulo, obrigado pelo comentário e pelo interesse no blogue e neste tópico. Sim, desde a publicação deste post tenho feito mais experiências exatamente da mesma forma descrita. Se estiver à vontade com o francês, aconselho a procurar informação em França, pois lá a sidra é muito comum assim como no norte de Espanha. Outro tópico a explorar poderá ser o destilado de sidra, o famoso "calvados" em França. No futuro talvez publique qualquer coisa sobre isso.
EliminarMuito obrigado por partilhar esta sua experiência com instruções tão detalhadas. Já ando há anos para arriscar produzir sidra. Foi este seu post que me deu a coragem que faltava.
ResponderEliminarQuando fala que o deixou uma semana em repouso tapou os garrafões? 😉 obrigado ta top a apresentação
ResponderEliminarSim, ficaram tapados durante esse tempo para não oxidar.
EliminarGostei muito da sua apresentação.
ResponderEliminarEstou agora a produzir a minha primeira cidra e queria perguntar-lhe como identificou o final da fermentação. Alguma medição? Qual?
Quando os tubos mergulhados na água deixam de borbulhar isso significa que a fermentação acabou. Com os tubos em água consegue-se controlar a fermentação e impedir a oxidação do mosto. Obrigado pelo seu comentário.
EliminarBoa noite! Este ano gostava de experimentar fabricar sidra caseira. Já aperfeiçoou o método ou continua a usar o mesmo?! Obrigado e parabéns pela descrição. Um abraço.João
ResponderEliminarPalme,
ResponderEliminarAre you still making cider here in Portugal?
There are several of us making cider around the country (including Portuguese people!). I was happy to see your post.
Here is an article about Sidra Faca Nos Dentes:
https://cervejaartesanalportuguesa.pt/post/186467506706/
Sr.Palme
ResponderEliminarDesde ja obrigado por este blog tem coisas incriveis estao este assunto da sidra diz mesmo muita coisa, eu gostava de fazer uma sidra de maça pois ate a minha terra se chama Maças e tentei entrar em contacto consigo como é que o faço?