Apesar de não usufruir de grandes bródios em Palme, o São
Miguel ocupa um lugar de destaque na hierarquia celestial. Na Bíblia, São
Miguel é descrito como o “Grande Príncipe”, como “Príncipe dos Exércitos
Celestes” e é dito que estará presente no dia do juízo final. Por causa desta
última alusão, São Miguel foi retratado com uma balança com os pratos
desnivelados, de onde as almas, pesadas com os pecados, escorregam agoniadamente
para o fogo purificador. Esta imagem, amplamente reproduzida, deve-se à crença
de que São Miguel estará no fim do mundo, a separar as almas justas das
condenadas, encaminhando as primeiras até às portas do paraíso e protegendo-as
das tentações do demónio. Por isso, o São Miguel está sempre presente nas orações
e nas cerimónias fúnebres e a bandeira do arcanjo segue sempre na dianteira dos
cortejos para o cemitério.
Ora, se ao São Miguel foi acometido o pesado encargo de
fazer a última triagem de toda a humanidade que viveu ao longo de todos os
tempos, encaminhando uns para o paraíso e outros para a geia, não é muito óbvia
a associação que lhe é feita às colheitas. A explicação reside no dia em que se
comemora o São Miguel, que é o dia 29 de setembro. Quem vive nos meios rurais
sabe que setembro é o mês forte das colheitas, altura em que há uma espécie de
assalto em larga escala ao que a natureza produziu. É apanhado o feijão, o
milho sai em braçadas ou em moinha pelos tubos das trituradoras, os cachos das
uvas são decepados com golpes de tesoura e de navalha. No final de setembro, os
campos ficam feios e desnudos, numa tristeza de violação consentida. Mas, se o
ano foi bom, as tulhas, os silos e os barris ficam a abarrotar, numa fartura
que dá para o ano inteiro. Sempre foi assim. Por isso, o São Miguel comemora-se
numa época de muito trabalho, mas também de abundância, e não faltam por aí
feiras e festas do São Miguel alusivas às colheitas. Até em Palme, em setembro
do ano passado, se fez uma feira das colheitas, embora o evento não se tenha
repetido em 2016.
Nos meios rurais, Palme incluído, aproveitou-se este período
de fartura para se fazerem peditórios de géneros agrícolas que, depois de leiloados,
ajudam a fazer face aos encargos das confrarias religiosas ou das comissões de
festas. Estes peditórios são conhecidos por “esmolas de São Miguel” e têm lugar
no início de outubro. No passado, as esmolas arrebanhadas eram muito mais
parcas do que hoje. Em tempos de penúria, as pessoas davam uma malguinha de
feijão, meio quarto de milho, um fundo de batatas numa saca pequena. Não eram
precisos veículos para transportar as oferendas, pois os esmolantes
carregavam-nas facilmente às costas. Mais para cá, as esmolas
profissionalizaram-se e surgiram os bombos e a utilização de um trator para
transportar as dádivas. Nos últimos anos, provavelmente porque não há quem
toque os bombos, institucionalizou-se o uso do altifalante, armado numa carrinha
de caixa aberta, a passar folclore e música popular. E, em tempo de vacas
gordas, os esmolantes tornaram-se mais ávidos: já não lhes chega a arroba de
milho; também querem aquele par de galos, aquele vaso de orquídeas (que rico) e
um frasquinho de mel daquelas colmeias Ou então simplesmente dinheiro, que é
mais leve e não é preciso arrematar. E afinal, o carcanhol é que faz falta.
Em Palme, este ano, as esmolas de São Miguel foram tantas,
que se arrastaram de outubro quase até dezembro. São demasiados peditórios num
espaço tão curto de tempo e, muitas pessoas, e com razão, já se andam por aí a
queixar. Então vejamos: esmola das Almas, esmola do Senhor, esmola do Santo
António, esmola da Senhora dos Remédios (este ano foram duas) e esmola para o
Palme Futebol Clube. Se a isto acrescentarmos o peditório para a festa de Santo
André, que se fez em finais deste mês, e o do Menino, que vem já a seguir, são
sete peditórios seguidinhos. Já para não falar do pagamento da Premissa que,
como os mais cumpridores sabem, deverá ser feito em outubro. São, obviamente, demasiados
encargos religiosos, até porque muita gente não tem géneros agrícolas para
oferecer e têm que contribuir com dinheiro. E para aqueles que têm filhos a
estudar, os meses de setembro e de outubro são férteis em despesas.
O bom senso
recomenda, pois, que para não sobrecarregar a população, os peditórios fossem
distribuídos ao longo do ano. Porque não realizar os peditórios que se fazem
apenas em dinheiro noutra altura do ano? Qual o sentido destes peditórios se fazerem
no São Miguel se só recolhem dinheiro? Porque não limitar os peditórios em
géneros a dois por mês? Se nada for feito é provável que as pessoas se
encolham, só deem a quem tiverem mais devoção, dividam o que davam antes por
mais peditórios ou, simplesmente, fechem a porta e não apareçam. Em boa parte,
este problema resulta do grande número de festas religiosas que a freguesia
atualmente comporta. Numa altura em que se assiste à supressão de festas e se
sentem dificuldades para organizar comissões um pouco por todo o lado, não
deixa de ser curioso que, em Palme, o número de festas tenha aumentado. Será
que se vão aguentar? Este assunto fica para um próximo post do blogue.
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