É sabido que os portugueses perdem a cabeça pelo jogo. No
Euromilhões, Portugal é de longe o país onde mais se aposta. Então quando as
bolinhas, caprichosas, teimam em sair em combinações que não ocorreram a
ninguém, os portugueses acotovelam-se em filas intermináveis nos quiosques e
casas de jogo para não perderem a oportunidade de mais um Jackpot. Fazem-se desde
logo planos: vou comprar um carro com 550 cavalos, vou 3 meses para Tuvalu, vou
comprar aquele palacete ao duque de Bragança, vou fazer mais isto e mais
aquilo, mas logo o sorteio faz cair por terra todos os sonhos. Ora bolas, saiu
o 7 e o 8 e eu tenho o 5 e o 6…valha-nos a apresentadora, bronzeada e
descascada, que até dá vida a um morto! A mais recente febre é a das
raspadinhas. Aquilo é como quem vai ao casino: compra-se, raspa-se e sabe-se
logo se tem prémio ou não. Com um mísero Euro qualquer mortal fica habilitado a
ganhar dez mil. O problema é que no meio de tantos milhares de bilhetes, apenas
meia dúzia têm o prémio máximo. No entanto, é muito frequente sair 1€ ou até
2€, o que vai dando para a gasolina e para alimentar o vício. Já foram exibidas
reportagens onde se mostravam casos de velhotes (e velhotas) que gastam a
reforma toda neste jogo (e com as reformas tão baixas nem dá para comprar assim
tantas raspadinhas quanto isso). Eu até conheço pessoas (conterrâneos de Palme) que se sujeitam a uma
barrigada de fome para, com os cobres poupados no almoço, comprarem
raspadinhas. Tão mal empregue! É que além de indigestas, as raspadinhas
contém produtos químicos, tintas, pratas e outras porcarias que desgraçam o
estômago de qualquer um que as coma…
Pois bem, agora os portugueses têm mais um jogo para se
distraírem: a fatura da sorte. Ao contrário dos outros, não é um jogo gerido
pela Santa Casa, mas sim pelo Governo. E é muito fácil de jogar. No ato do
pagamento de qualquer bem ou serviço, basta pedir uma fatura com o número de
contribuinte e, voilá, fica-se
automaticamente habilitado ao sorteio de um prémio que pode ascender a 91000€.
Quem esfregou as mãos de contente foi o Relvas e o Gaspar pois, ao que consta,
muita gente ainda continua a pedir faturas com o número de contribuinte deles.
Para além das questões de sorte e de azar, que são mais difíceis de controlar,
as probabilidades de ganhar são proporcionais ao número de faturas pedidas por
cada contribuinte. E, ao contrário dos outros jogos, não custam nada. O
português, como bom profissional do jogo que é, já definiu a tática: pedir
faturas por cada produto comprado. Nos mercados vão formar-se filas compridas:
- Ó Carma, olha, eu queria pagar separado esta mercearia: a
saca de cebolas é para mim, as tirinhas da barriga são para a minha irmã, os
filete de peixe-gato para a minha filha, esses trusses são para o meu Tone (é
um porco, anda aos 8 dias sem os mudar!), o garrafão do paizinho é para o meu
cunhado e as giletes são para a minha sogra, que daqui a pouco até parece o
barbas do Benfica…e arranja-me uma fatura separada de cada coisa…
- Ó mulher mas eu tenho aqui mais pessoas para atender, que
raio de panca….
E assim, em vez de uma fatura, conseguem-se seis e aumentar
exponencialmente as hipóteses de ganhar. Os prémios não vão ser pecuniários,
mas sim em géneros, nomeadamente sob a forma de automóveis de luxo. O anúncio
do governo (que rica ação de propaganda) acena aos consumidores com um Porsche
Panamera, embora os 91000€ não cheguem para comprar este bólide super
desportivo. E mesmo que chegassem, como poderia o português comum pagar a
manutenção dum carro destes? De qualquer dos modos, não restam grandes dúvidas
que o jogo da fatura vai ser um sucesso, estando previsto um sorteio semanal a
partir de abril e alguns sorteios extraordinários ao longo do ano. As faturas de
janeiro já contam para os primeiros sorteios, portanto toca a pedir!!
E assim vai o nosso país. O Governo engendra um
esquema para supostamente combater a evasão fiscal e não se coíbe de alocar 10
milhões de Euros para a brincadeira. Mas aos pensionistas e funcionários aplica
mais uma tesourada nos seus rendimentos, alegando dificuldades orçamentais. A
política vai-se transformando num jogo de casino, onde a fatura da sorte vai
saindo a quem, em vez de servir o país, se vai servindo dele. A fatura do azar
vai continuar a sair aos do costume. Vale uma aposta?
PS: Afinal o Governo desiludiu uma vez mais os portugueses. Ontem, 24 de Março, foi anunciado que as viaturas a sortear serão da marca Audi: um Audi A4 nos sorteios semanais e um Audi A6 nos sorteios extraordinários. Os cerca de 47000€ que custa este segundo bólide ficam muito longe dos 91000€ inicialmente anunciados. Até no raio do sorteio houve uma tesourada! Apesar disso, parece que o número de pessoas que pediu faturas com número fiscal subiu 41% no mês de janeiro. O português não brinca em serviço! Agora não vão faltar por aí Audis A4 a derreter a carteira dos sortudos. Num inquérito de rua jornalístico, muitos transeuntes manifestaram intenção de se desfazerem dos carros dos anéis para pagar contas e dívidas! Na verdade, este sorteio não faz nenhum sentido, pois apela ao consumismo e à importação de bens de luxo, que os portugueses não podem pagar e pelos quais muitos ainda estão com a corda na garganta. Antes de carros importados, o Governo devia sortear cabazes de compras (já viram o que eram 40000€ em cartão Continente?), produtos de primeira necessidade, cheques para abater nas prestações da casa ou, simplesmente, bilhetes de avião para as pessoas se pisgarem daqui para fora. Isso sim seria um sorteio prestável e de cariz social. Agora Audis A4 e A6, para quê e para quem?
Sem comentários:
Enviar um comentário