De acordo com o dicionário da
Porto Editora, cuspir consiste no ato de “expelir cuspo” ou seja do
líquido segregado pelas glândulas salivares. A mesma fonte explica que escarrar
é o ato de cuspir escarros, de expetorar. E também diz que o escarro é uma “matéria
viscosa segregada pelas mucosas (em especial, das vias respiratórias) e
expelida pela boca”. Ambos os atos, cuspir e escarrar, são usados como
sinónimos, pois significam expulsar, por via oral, líquidos e matérias viscosas,
mais ou menos pegajosas, de coloração variada, que vai do branco ao verde,
passando pelo amarelo e vermelho quando contém vestígios de sangue.
Cuspir e escarrar
é algo que está muito enraizado na cultura portuguesa. O ato em si reveste-se
de todo um cerimonial. Primeiro é preciso puxar ruidosamente o escarro das
profundezas abissais das ramificações pulmonares. Dependendo do nível de
entupimento das vias respiratórias e da contração dada, poderá ser necessário
mais de que um arranco cavernoso para fazer subir os fluidos ao nível bocal.
Uma vez na boca, a próxima etapa consiste em moldar e enrolar convenientemente
a viscosa em forma de projétil, para que saia tudo de uma só vez. O último passo
é o da expulsão da dita cuja, que é arremessada com um som característico (thsssppp)
a uma velocidade variável que pode atingir os 20 km/h. A escarradela tem duas variantes.
A forma mais pura e tradicional é a de cravar diretamente o escarro no chão ou
numa parede lateral. Quem se aventurar pelas ruas da cidade de Barcelos num dia
de feira, sobretudo durante o inverno, quando os achaques das vias
respiratórias são mais frequentes, depara-se com as ruas salpicadas de grossos
e coloridos escarros, que obrigam a fazer autênticas gincanas para os não
pisar. Nessas alturas, tenho sinceramente pena das pessoas marrecas, que andam
com os olhos espetados no chão e são obrigadas a apreciar este espetáculo
degradante. A forma mais civilizada e fina de escarrar é praticada por aqueles
que trazem na algibeira um lenço da mão. Nestes casos há um segundo ritual que
consiste em fazer um compasso de espera com o escarro na boca enquanto se vai
ao fundo do bolso das calças pescar o lenço, o qual se desdobra pausadamente.
Com o lenço aberto e amarrado com as duas mãos, o escarrador profissional crava
a bisca no centro geométrico do lenço, fita-a durante uns instantes, dobra o
lenço e deposita-o cuidadosamente no bolso, para não amachucar o escarro. Como
todos se recordarão, um dos melhores mestres desta prática foi o padre Afonso,
que cometeu a proeza de nunca ter falhado o alvo (o lenço da mão), para grande
alívio dos paroquianos que tinham lugar reservado mesmo por baixo do púlpito. O
ato de cuspir e de escarrar é tão generalizado em Portugal que poderia ser
convertido em desporto nacional ou até em modalidade olímpica. Há competições
para ver quem escarra mais longe, para ver quem escarra mais alto, quem escarra
mais vezes durante um determinado período de tempo, quem consegue acertar num
determinado alvo com a bisca, etc. Em Palme também temos ótimos praticantes desta modalidade, que seriam sempre sérios candidatos a um lugar no pódio em qualquer prova nacional ou internacional.
Mesmo em clássicos da literatura portuguesa,
o escarro está muito presente. A obra de Eça de Queirós é fértil em escarros. Em
Os Maias, por exemplo, encontramos esta passagem:
“Como o Sr. Dâmaso Salcede
recusava retratar-se e rejeitava também uma reparação pelas armas, Carlos da
Maia prevenia-o de que em qualquer parte que o encontrasse, daí por diante,
fosse numa rua, fosse num teatro, lhe escarraria na face…
- Escarra-me! – berrou o
outro lívido, recuando, como se o escarro viesse já no ar.”
É curioso que a forma como o
Dâmaso recuou, como se o escarro viesse já no ar, faz lembrar o episódio
recente entre o ex-presidente do Sporting, Bruno de Carvalho, e o seu homólogo
do Arouca, que se queixa de ter sido escarrado pelo primeiro. As imagens não
são claras, terão sido apenas vapores do sofisticado cigarro eletrónico como
alega o presidente leonino? Ou terá sido mesmo um fluido viscoso das entranhas
do Bruno como alega o presidente arouquense? O que é certo é que tal como
Dâmaso, o presidente do Arouca recuou e, logo de seguida, se encristou contra o
ex-líder leonino. Um mimo!
Em Portugal, cuspir em
alguém, ao abrigo dos artigos 181º e 182º do Código Penal, é considerado crime
de injúria. Em diversas cidades por esse mundo fora cuspir num espaço público é
punido com coimas. A cuspidela sai particularmente cara em Singapura, com a
multa a atingir os 892€. Se o transgressor reincidir, a multa pode chegar aos
4500€. Também em Portugal diversos municípios regulamentaram no sentido de
punir o ato de cuspir nos espaços públicos. Por exemplo, em Matosinhos, a multa
começa nos 45€ mas pode chegar aos 4500€. Em Oliveira do Bairro, a multa está
tabelada em 250€. Cuspir está, portanto, pela hora da morte! Mais vale andar
com o escarro o dia inteiro na boca e chapá-lo na sanita quando chegar a casa
do que arriscar uma multa destas!
Este historinha vem a
propósito de um sinal de proibição de cuspir que está afixado na lota de
Esposende. A lota é um local propício ao escarro, devido ao intenso cheiro a
peixe e ao triste espetáculo que entra pelos olhos dentro de peixes com as
vísceras a irromperem pelas barrigas anavalhadas e de congros, agonizantes, que
saltam para fora das caixas e ameaçam trepar pelas pernas acima das senhoras. O
que vale é que na lota é tudo fresquinho e não há odores fétidos, a peixe em
putrefação, como acontece no interior de algumas carrinhas de venda ambulante. Na
referida lota, há mais três sinais de proibição, que toda a gente
conhece. Num deles, há um traço vermelho sobre um cigarro. Como facilmente o
leitor imagina, é proibido fumar o que é compreensível por se tratar de um
espaço fechado. Noutro, há um traço vermelho sobre um copo e talheres cruzados.
Como também se percebe, é interdito levar farnel para o interior da lota, assim
como o garrafão de tintol. A desculpa de entrar com o garrafão para pôr o peixe
em vinha de alhos já foi tentada, mas não colou. Num outro, há um traço
vermelho sobre um canídeo. Como todos entenderão, este sinal proíbe a entrada
de animais no recinto. Embora o deputado do PAN possa achar que a lota não está
a respeitar os direitos dos animais, percebe-se a interdição pelo risco dos
cães poderem abocanhar um robalo ou de mandarem uma dentada numa chaputa. Por
fim, o quarto sinal mostra-nos um traço vermelho sobre um fundo branco! E aqui
fica a dúvida, é proibido o quê? Entrar liso (teso) no recinto? Podia ser mas
não é! A legenda esclarece: é proibido cuspir! Então, o sinal de proibido
cuspir é assim? Quererá o fundo branco mostrar que o chão deve estar imaculado
de escarradelas? Uma busca na Internet revela que há diversos sinais mais
esclarecedores do que este para proibir a tradicional cuspidela. Por isso,
parece que o autor deste painel cuspiu na própria obra, ou melhor, borrou a pintura por completo…
Sinalética de proibições na lota de Esposende
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