Não havia um dia que a Vera não prometesse vingança. De manhã, ao passar os cremes e a base no rosto ali estavam as marcas na testa e a cicatriz no nariz da mocada que a Maria de Fátima lhe dera com a caixa da sagrada família. E dizia para com ela:
- Ganda puta, que hás de mas pagar!!
Só que que esse momento ainda não se proporcionara. Com confinamentos, distanciamentos e recatos sociais, principalmente da Maria de Fátima que já não ia para nova, as vizinhas raramente se cruzavam na rua. E quando isso acontecia, mais por receio de contagiar a alma do que do canastro da moçoila, a Maria de Fátima afastava-se da vizinha. Sempre que a via, apertava o cruxifico do terço que trazia no bolso do avental ou da bata e mudava de rumo ou de passeio. A Vera olhava-a de soslaio, rosnava-lhe pragas e cuspia no chão com repugnância, como se lhe escarrasse bem no meio daquela cara chupada de beata.
Mas as coisas não estão para brincadeiras. E há menor distração, zás, a vida prega-nos uma partida. Começou por sentir-se esquisita, uns arrepios, dores de garganta, tosse, dores pelo corpo todo. Depois de feito o teste, o resultado foi claro: positivo! A Vera estava contagiada. Quando recebeu a mensagem ainda estremeceu um bocado. Mais pelos dias que tinha de passar em casa do que pelo medo da doença. Afinal quantas gripes não tivera já? Várias por ano! Bastava-lhe sair mais descascada à noite que era quase certo. Mas onde raio apanhara o vírus? É certo que em Palme está meia freguesia coronada…teria sido no café? Na florista? Na esteticista? A filha na escola? Na Junta quando foi carimbar o papel para a Segurança Social? Talvez. Ou teria sido as três noites que passou enroscada com o Berto. Pois se calhar até foi ele que lhe trouxe a bicheza da Espanha e apegou-lha. Mas deixá-lo, ele pagava bem e enchia-a de presentes. E enquanto pensava nisso olhava embevecida para a pedra do anel de ouro que o Berto lhe deixara na mesinha de cabeceira. Mas agora tinha que gramar com a espiga de passar uma semana em casa a secar. E foi num desses dias de retiro forçado que a vingança se lhe tornou mais clara: infetar o raio da velha!
A Vera sabia que a Maria de Fátima não faltava à missa. E que da igreja, vinha direta como uma flecha para casa. Esse intervalo de tempo era o momento perfeito para lhe fazer a cama. No sábado pôs o relógio a despertar para poder estar acordada no domingo àquela hora da madrugada a que a missa decorria. E assim foi, pelas 10H saiu pé ante pé de casa enrolada no seu robe amarelo e dirigiu-se à porta da vizinha. Tudo permanecia numa quietude celestial. Então, com grandes roncos, fungadelas e assoadelas, despejou os fluídos das fossas nasais e das vias respiratórias no lenço e besuntou parcimoniosamente a maçaneta do portão da vizinha de ranhos e mucos pestilentos. Pouco depois, ao abrir o portão de casa, a Maria de Fátima ainda achou o manípulo pegajoso e húmido e murmurou:
- O senhor me perdoe, mas este tempo de inverno até já mete nojo! Sempre tudo a escorrer…
A Vera, que a espiava da janela do quarto, é que ficou radiante. A velha não se ia safar. E estava certa. Daí a três dias, a Maria de Fátima, carregada de tosse e febre e com muita falta ar, caía de cama. Ao respirar fazia uma chiadeira que até se ouvia por toda a rua Hilário Cachada.
A Vera essa estava totalmente recuperada e pronta para outra. E feliz com a sua vingança, propôs-se a ir até ao café para festejar. E foi aí que a Isabel, a vizinha do seu lado, a interpelou inesperadamente:
- Ai mulher, o que tu foste fazer à Fatinha e ao desgraçado do ti Januário?!
(Continua)